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segunda-feira, 21 de maio de 2012

O PIRAJÁ

Naqueles tempos antigos o teresinense viajava outras terras nos paquetes ou navios do Lóide e da ITA. tomavam a embarcação em São Luís e ganhavam o mundo, pelo Rio de Janeiro, por Belém, Manaus, Recife e na volta traziam engradados de mudas de plantas frutíferas para os pomares e chácaras, sempre denominadas QUINTAS. Uma luta possuir uma quinta. Coisa de gente bem, como se diria hoje. Mas pobre também possuía os seus cajus, as suas mangas, as suas laranjas.

Escolhia-se o local, adquiria-se o terreno e surgia a primeira dificuldade, o nome para o futuro celeiro. Um dos melhores e mais lidos cronistas de Teresina, o saboroso Joel Oliveira, escreveu que se reuniam os familiares e cada qual sugeria a denominação de sua preferência. Esteve em moda a escolha de cidades brasileiras, como Olinda, Petrópolis, Pirapora, antecedida de QUINTA: QUINTA MIRITIBA, QUINTA PORANGABA, QUINTA BELO HORIZONTE. Escolhiam-se nomes de cidades européias: Berlim, Zurich, Granada, ou localidades do Rio, a exemplo de Tijuca, Laranjeiras. Havia o batismo de terras santas, Tabaída, Botânica, Betsaida. Fixavam-se ainda denominações diversas: Rosal, Parnaso, Bela Flor, Irani. As esposas eram homenageadas, mas de outro modo, e surgiam as vilas nas residências, sempre distantes das QUINTAS. O processo vigorou durante muito tempo. Em 1933, meu pai construiu casa residencial, em que se lia, no portão de entrada, a denominação VILA EDITH, homenagem à cara-metade, minha madrasta. Pois bem. Aí pelo começo do século, ou antes, apareceu a QUINTA PIRAJÁ.

*   *   *

O mundo inteiro adotou o processo de designações para os palácios oficiais. De modo geral, dizia-se PALÁCIO DO GOVERNO  a sede do executivo, lugar dos despachos e da morada do governante. Palácio dos Leões em São Luís, Palácio do Catete e Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro. Em Fortaleza, conheci o Palácio da Luz, onde decidia e residia o interventor Meneses Pimentel, hoje sede da Academia Cearense de Letras. Certa vez, em 1968, discursei no Palácio Piratini, residência oficial e sede administrativa em Porto Alegre. Foi no tempo de um congresso jornalístico de que participou o Piauí, com delegação composta de vários confrades, entre os quais Araújo Mesquita, Deoclécio Dantas, Rodrigues Filho, Vieira Chaves, Paulo José e outros. Gente boa.

Moscou, Paris, Cairo, Roma, nomeiam os seus palácios, costume velho como a serra dos cocos. Karnak, em Teresina, foi nome de chácara, a CHÁCARA DE KARNAK, denominação tomada da estranja. Tornou-se sede do executivo piauiense e residência governamental em 1926, inaugurado por Matias Olímpio. O governador Rocha Furtado residia em casa própria, também Pedro Freitas e outros. Clímaco de Almeida passou algum tempo na residência da praça João Luís, depois se fixou em Karnak. O governante Aberto Silva iniciou, no primeiro governo, o aluguel de mansões de luxo para moradia, imitado por Dirceu Arcoverde e Hugo Napoleão. Os governadores Lucídio Portella e Freitas Neto não quiseram sair da residência particular.

Gayoso e Almendra despachou algum tempo no prédio atual do Tribunal de Contas, se a memória não me deserda, antiga residência de Heitor Castelo Branco, e Alberto Silva despachava da sede do antigo Seminário diocesano. Ninguém se lembrou de denominar esse velho prédio de PALÁCIO HEITOR CASTELO BRANCO ou PALÁCIO DO SEMINÁRIO. Seria tolice refinada batizar o provisório deslocamento da sede administrativa.

Freitas Neto pretende instalar o governo em prédio de uma empresa de assistência técnica, a EMATER, no bairro ou subúrbio do PIRAJÁ, e logo os distintos proclamaram a oportunidade de denominação de PALÁCIO PIRAJÁ.

Que representa esse Pirajá, nome indígena? É nome da antiga QUINTA de fruteiras de Teresina. Nome baiano. Certamente o dono achou bonita a designação, que recorda o combate do Pirajá, na Bahia, ao tempo da luta pela independência nacional, travada a 8 de novembro de 1822. Melhor seria JENIPAPO, onde tombaram os nossos humildes heróis, em 13 de março de 1823. Mas JENIPAPO soa mal, não calha bem à sede da administração do Piauí.

Recorde-se ainda que a QUINTA PIRAJÁ, adquirida no governo do presidente Nilo Peçanha, teve nela instalada a Escola de Aprendizes e Artífices, em 1910, subordinada ao ministério da Agricultura, com oficina de ferreiro e serralheiro. Passou a chamar-se Escola Industrial. Hoje, Escola Técnica Federal.

Se Freitas Neto adotar sede provisória, devia chamar-se PALÁCIO DA ADMINISTRAÇÃO ou PALÁCIO DO GOVERNO. Se pretende fixação definitiva, calha de modo criterioso PALÁCIO 13 DE MARÇO, homenagem aos vaqueiros e agricultores que empurraram as forças militares portuguesas para o Maranhão, em 1823.

É verdade que existe o MONUMENTO DO JENIPAPO, evocativo da batalha do mesmo nome. Prestar-se-iam duas homenagens, em Campo Maior e Teresina. Que tem isso? Em São Paulo executou-se um grande conjunto escultórico, de * metros de cumprimento, 16 de largura e 10 de altura, exaltando os bandeirantes e posteriormente se deu a sede do governo paulista a denominação PALÁCIO DOS BANDEIRANTES.

Será que os baianos dariam ao seu palácio governamental o nome PALÁCIO DO JENIPAPO?. É tempo de mandar a subserviência às favas e pensar no que nos pertence.

    
A. Tito Filho, 09/05/1991, Jornal O Dia - p. 4

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PARENTESCO ACADÊMICO

Lucídio Freitas teve a idéia de fundar a Academia Piauiense de Letras e depressa se reuniram dez intelectuais para o objetivo: Clodoaldo Freitas, João Pinheiro, Celso Pinheiro, Fenelon Ferreira Castelo Branco, Jônatas Batista, Edison da Paz Cunha, Benedito Aurélio de Freitas, Higino Cunha, Antônio Chaves, e o próprio Lucídio Freitas. Cada qual escolheu o seu patrono.

Observe-se o parentesco dos primeiros acadêmicos na escolha dos patronos: Clodoaldo escolheu o parente José Manuel de Freitas; Fenelon, o parente Joaquim Sampaio Castelo Branco; Jônatas, o parente Davi Caldas; Lucídio, o irmão Alcides Freitas. Os fundadores guardavam a seguinte relação de família Alcides; João Pinheiro irmão de Celso; Edison, filho de Higino Cunha.

Composta de 40 cadeiras, preenchidas as 10 primeiras, foram escolhidos os demais titulares e estes escolhiam os patronos respectivos, citando-se os parentes: Antônio Ribeiro Gonçalves escolheu o irmão Joaquim; Amélia Freitas Bevilaqua escolheu o parente Lucídio; Nerina Castelo Branco escolheu o parente Antônio Noronha; Darcy Araújo escolheu o irmão Vicente Araújo; Lilizinha Castelo Branco de Carvalho escolheu o pai Heitor Castelo Branco; Celso Barros escolheu o cunhado José Newton de Freitas.

Com o correr dos anos e a morte dos titulares, houve as naturais substituições, do que resultaram novos parentescos. Relacionem-se os demais Castelo Branco escolhidos para a Academia até 1990: Hermínio de Carvalho Castelo Branco, Teodoro Castelo Branco, Antônio Borges Castelo Branco, Cristino Castelo Branco, Carlos Castelo Branco, Renato Castelo Branco, Miguel Borges Castelo Branco, Emília Leite Castelo Branco. Bem que se poderia acrescentar José de Arimathéa Tito e o filho, ambos Castelo Branco, embora o nome familiar não participe do nome de ambos.

Observe-se mais parentesco: José Manoel de Freitas foi irmão de Amélia de Freitas Bevilaqua e pai de João Alfredo de Freitas; João Pinheiro, irmão de Celso, teve outro irmão acadêmico, o jornalista Breno Pinheiro; Cromwell Barbosa de Carvalho foi pai de Robert de Carvalho e * Academia o sobrinho João Gabriel Baptista. D* patronos irmãos: Anísio e Areolino de Abreu. Celso Pinheiro e Celso Pinheiro Filho, pelos nomes constituíram pai e filho; pai e filho são * e Hugo Napoleão, o primeiro sobrinho de Martins Napoleão; Odylo Costa teve outro filho ilustre, Odylo costa filho; parentes eram J* e Jônatas Correia; Gabriel Luiz Ferreira e Félix Pacheco, pai e filho; Mário Baptista e Benjamin Baptista, irmãos; Armando Madeira Brandão e Armando Madeira Basto, tio e sobrinho; pai e filho, Cristino e Carlos Castelo Branco.

Ocuparam as cadeiras dos pais: Carlos Castelo Branco, Odylo Costa filho e Tito Filho.

Aí se relacionaram os que têm parentes próximos. Existem vários outros parentes no quadro da Academia Piauiense de Letras. Só citei os mais chegados. Não se diga, porém, que houve influência de uns na escolha dos outros. De modo geral, os parentes já tinham seguido desta para pior vida quando se escolhiam os novos titulares, sem que houvesse, assim, influências na eleição.

No ingresso, vivos estavam Clodoaldo e Lucídio, João, Celso e Breno Pinheiro, Higino e Edson Cunha. Quando foi eleito Robert, o outro Cromwell estava bem idoso. Por último, o José Miguel de Matos tem parentesco com outros Freitas, o mais próximo dos parentes se chamou Esmaragdo de Freitas e Sousa, da primeira cadeira acadêmica, primo legitimo de Dona Maria do Ó e Sousa, mãe do autor da “Antologia Poética Piauiense".


A. Tito Filho, 17/01/1991, Jornal O Dia - p. 4

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* Não está visível no original

A ACADEMIA E O LIVRO

Leônidas Melo, que governou o Piauí de 1935 a 1945, mais de dez anos, praticou alguns atos censuráveis porque violentos. A sua administração, porém, foi das mais benéficas às coletividades estaduais. No aspecto cultural, esteve irrepreensível. Reeditou obra rara como a autobiografia do cabo-de-guerra português Fidié. Incentivou a vida literária de Teresina com a edição de trabalhos de poetas e prosadores, inclusive a primeira história da literatura piauiense, de João Pinheiro. Publicaram-se livros dos mais ilustres escritores da época, como Higino Cunha, Celso Pinheiro, Martins Napoleão, entre outros. Livros de diminuta tiragem e que circulavam nos restritos meios intelectuais, sem que chegassem ao grande público.

Só a partir de 1972, no primeiro governo de Alberto Silva, se verificou a difusão da história política, social e administrativa do Piauí, bem assim das melhores concepções em prosa e poesia dos autores piauienses, e à Academia Piauiense de Letras, sobretudo coube a organização das obras, às vezes a adaptação ortográfica, os comentários dos textos, e a ela atribuiu a tarefa de distribuí-las por todas as áreas federadas. De 1972 até os dias atuais, com o incentivo e o apoio de várias administrações, a Academia promoveu seguidamente a edição de dezenas de bons livros, a exemplo de LIRA SERTANEJA (Hermínio Castelo Branco), PESQUISAS PARA A HISTÓRIA DO PIAUÍ (Odilon Nunes), NAS RIBAS DO GURGUÉIA (Artur Passos), CRONOLOGIA HISTÓRIA DO ESTADO DO PIAUÍ (Pereira da Costa), A GUERRA DO FIDIÉ (Abdias Neves), HISTÓRIA DA IMPRENSA NO PIAUÍ (Celso Pinheiro), O PIAUÍ NA POESIA POPULAR (Félix Aires), DEPOIMENTO PARA A HISTÓRIA DAS REVOLUÇÕES NO PIAUÍ (Moysés Filho), CANTO DA TERRA MÁRTIRE (Martins Vieira), antologias de José Coriolano, Zito Batista e Esmaragdo Freitas (A. Tito Filho), PRAÇA AQUIBADÃ (A. Tito Filho), HISTÓRIA EPISCOPAL DO PIAUÍ (Dagoberto Júnior), CANCIONEIRO GERAL (Martins Napoleão), APONTAMENTOS BIOGRÁFICOS (Padre Joaquim Chaves), GEOGRAFIA FÍSICA DO PIAUÍ (João Gabriel Baptista), POESIA E PROSA (Jônatas Baptista), ANGLO-NORTE-AMERICANISMOS NO PORTUGUÊS DO BRASIL (A. Tito Filho), NOTAS FORA DA PAUTA (Moura Rego), NORDESTE (Hermes Viana), ENDOEMA (William Palha Dias), IDEOLOGIA E CIRCUNSTÂNCIA (Clidenor Freitas Santos), A MISTERIOSA PASSAGEIRA (Lili Castelo Branco), MUSEUS E CASAS DE CULTURA DO PIAUÍ (Lícia Margareth e Marília Coelho), TROPICALISMO (Soares Cordeiro), MOVIMENTOS SOCIAIS (Sônia Nogueira), LICEU PIAUIENSE (A. Tito Filho), O DISCURSO IMPERFEITO (M. Paulo Nunes), MEDICINA E PODER POLÍTICO EM FLORIANO (Bento Bezerra), TERESINA MEU AMOR (A. Tito Filho), UMA FIGURA SINGULAR DE MISSSIONÁRIO (Frei Memória), UM DRAMA DE CONSCIÊNCIA (Salomão Chaib) - livros que muito contribuem para o conhecimento da terra piauiense ao revelar ainda dos principais autores de ficção, crônicas  e de crítica literária.

É vigoroso o plano da Academia para 1991, iniciado com um bom romance de José Expedito Rego, MALHADINHA, de costumes familiares sertanejos e amores ilícitos de gente da antiga capital do Piauí. Ainda do ano passado, com lançamento festivo em dezembro, entregou-se ao público MEMÓRIAS E DEPOIMENTOS, do ex-governador José da Rocha Furtado.

Outros livros de variado gênero poderiam ser relacionados como parte do volumoso plano acadêmico dos anos anteriores. Para 1991 se preparam no momento obras de grande utilidade originadas por autores projetados como William Palha Dias, M. Paulo Nunes, Miridan Britto Knox, Orgmar Monteiro, Hardi Filho, Renato Castelo Branco, Sátiro Nogueira, Afrânio Nunes.

Já neste sábado, a Academia lança ASPECTOS DA ARQUITETURA DE FLORIANO, uma obra valiosa, fartamente ilustrada, de autoria do professor José Nunes Fernandes, um jovem de inteligência e dedicação à vida cultural.


A. Tito Filho, 16/02/1991, Jornal O Dia - p. 4

FOLIA PERNICIOSA

Iniciada quinta ou sexta-feira, a folia carnavalesca continuava agitada na manhã de 4ª feira de cinzas, sobretudo em Olinda, Recife, Salvador, Rio de Janeiro. A nação inteira esteve paralisada dias seguidos, com atividades suspensas. No sábado, dia 9 de fevereiro Dom Eugenio de Araujo Sales escreveu em jornal carioca: "A cidade gasta somas consideráveis em sua decoração, pobres economizam dos seus poucos salários, durante todo o ano, para consumi-los em efêmeras extravasões de uma fugaz alegria. Quantias extraordinárias vêm de fontes duvidosas; o luxo e o desperdício chocam-se com a miséria reinante".

Participei de alegres festas carnavalescas, quarenta, cinqüenta anos passados, nas décadas de quarenta, cinqüenta. Era uma festa popular de raros excessos. Muito se brincava, sem erotismo, sem mulheres peladas, sem magotes de veados na exibição dos peitos e nádegas artificiais. Uma folia contagiante, fraterna, iniciada por volta das cinco da tarde e encerrada pelas quatro da manhã do dia seguinte.

A chamada LIBERTAÇÃO da mulher transformou a vida social. Completou-se a circunstância, no Brasil, com a TELEVISÃO e o seu criminoso PROCESSO EDUCATIVO das novelas destinadas à corrupção da família.

Poderosos interesses de uns trinta anos para cá orientam e dirigem os carnavais brasileiros, subornando indivíduos e instituições. Neles se locupletam indústrias e comércio e para tanto a publicidade faz deles exibição permanente de despudoramento e luxúria. Nos bailes em clubes fechados se passam cenas de Sodoma e Gomorra, orgias e bacanais que só uma sociedade doente admite e suporta, e um governo cúmplice as permite e garante. Dissipam-se milhões, bilhões nessas nefastas falsas brincadeiras carnavalescas.

Fraquíssimo o carnaval de Teresina neste 1991. Antigamente não havia entre nós escola de samba e o respectivo desfile. Havia blocos populares, engraçados, que acompanhavam o corso de automóveis. Com o surgimento do carnaval comercializado do Rio de Janeiro, e o aparecimento das suas luxuosas escolas, os foliões de nosso meio quiseram criá-las e também apresentá-las em grotesco e desengonçados desfiles pela avenida Frei Serafim. Logo se buscou o recurso do erário público. Seria o caos sob proteção da Prefeitura e do Estado. Mas desta vez os cofres estaduais emborcados e a negativa salutar o prefeito Heráclito não permitiram os dinheiros para o pagode. Ainda bem.

Vi cenas televisadas de bailes em clubes do Rio de Janeiro. Um deboche. Mulheres quase despidas. Uma tristeza o baile dos GEUIS, Só as mães irresponsáveis permitem a exibição de jovens sexualmente pervertidos num espetáculo em que os próprios locutores da televisão debocham das pobres vitimas, moças de vida sem esperança, a *ço de uma sexualidade anormal e angustiada. As fantasias desses jovens, riquíssimas, reclamam milhões de material e mão-de-obra. As cenas de debocharia eram provocadas por doutora no assunto, a famosa Rogéria, que machucava os ouvidos dos rapazes a cada vez que soltava piadas de mau gosto, ao defini-los.

Quanto o Brasil gastou neste carnaval? Ninguém sabe. Não se pode avaliar o que se perde em valores morais e espirituais. Em deseducação do povo, que assiste, de boca aberta, a tolices referidas nas letras das músicas e ofensas sem contar com a convivência da boa linguagem. A pornografia, corrompe e avilta, representa a principal característica do carnaval do nosso tempo, ao lado da violência à própria dignidade do ser humano.

Quanto o Brasil gasta com hospitais, médicos e medicamentos? Não se sabe. No Rio, terça-feira, os meios de comunicação anunciavam o registro de * assassinatos nos três primeiros dias da festa que o dinheiro transformou em maneira de desregramento moral.

Convocou-me a atenção, nos bailes transmitidos pela TV-Bandeirantes, a circunstância da insistência da câmera em focalizar mulheres de traseiros à mostra, num processo rebolativo monótono. Um rebolo permanente, enjoativo, fazendo crer que a mulher só possui esse degenerado modo de atrair publicidade e admiração. Os homens aguardavam os momentos da depravação sem freios, na madrugada sem-vergonha.


A. Tito Filho, 15/02/1991, Jornal O Dia - p. 4

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AS BOAS PROMESSAS

A 15 de março de 1991 este jornal "O DIA" publicou a notícia de que uma mulher sofreu choque elétrico e partiu desta para pior vida.

Dois anos passados um jovem professor retornava das aulas noturnas, pilotando a sua motocicleta, alegre, depois do exaustivo trabalho. Agora teria o aconchego do lar e a convivência dileta da patroa e dos filhos. No Mafuá, um fio da rede de eletricidade o alcançou e no local o pobre vivente adquiriu o descanso eterno.

Na década de 50, meu saudoso colega da Academia Piauiense de Letras, Fontes Ibiapina, em casa, apertou um botão de acender lâmpada e padeceu violento tombo e queimaduras. Quase embarca, Sofreu demais, em cima da cama, e só meses depois pôde caminhar, ainda assim caxingou até a morte.

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A luz elétrica pública de Teresina data de 1912, governo Miguel Rosa. Deslumbrante a inauguração. Gente muita, discursos empolgantes. A iluminação restringia-se à praça Rio Branco. Somente a 10 de maio de 1914 funcionaram a máquina diesel e os dois geradores. Era domingo. A cidade iluminada tomou-se de incontida alegria. Postes de madeira, substituídos por potes de ferro em 1923; ano da primeira greve na usina elétrica, cujo diretor, Santídio Monteiro, denunciou publicamente o secretário da Fazenda, Lucrécio Dantas Avelino, de pagar a luz de sua residência por preço inferior ao devido. A safadeza vem de longe. O acusador foi suspenso por dez dias. Os operários declararam-se em greve e Teresina viveu à escuras. Convocaram-se maquinistas para o funcionamento das máquinas. Nada se conseguiu. Os estudantes do Liceu, sempre buliçosos, fizeram passeata de velas acesas. Santídio Monteiro recusou-se a qualquer cooperação. Novos incidentes. A suspensão subiu para noventa dias. Somente com a vinda de engenheiro inglês, chamado de São Luís, a luz voltou às ruas e às casas. Na época, o engenheiro Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves dirigiu as obras de novas instalações da usina.

No ano da revolução paulista contra a ditadura do presidente Getúlio Vargas o teresinense só dispunha de luz até a meia-noite. Em 1940 contrataram-se com o Siemens reparos na rede, que os reclamava com urgência.

Ainda época de interventoria no Brasil. A do Piauí coube ao coronel mineiro José Correia, que se voltou para o problema da iluminação da capital. Prestigiado pelo presidente Dutra, adquiriu na Suécia turbinas termoelétricas que só chegariam e se montariam em 1950. Antes, em 1947, veio de Alagoas para a nossa o motor apelidado pelo povo de Maria Bonita. Governo de José da Rocha Furtado, que * Teresina, quase ao apagar de sua administração farta. Era o Natal de 1950.

O general Gayoso e Almendra, governou de 1955 a 1959, criou o IAEE (Instituto de Águas e Energia Elétrica). Instalou-se a Central Elétrica do Piauí em 1962. A energia de Boa Esperança chegaria em 1970.

– X –

Eis ligeiro histórico do que tem sido feito de Teresina para auferir o conforto do progresso que a energia elétrica proporciona. Ainda perto do ano dois mil, nas noites de chuva e relâmpagos e trovoadas, a luz nos foge, e se fica de livro na mão e carne na geladeira até que a claridade retorne. A vela cumpre o serviço civilizador.

Quem percorre as ruas e praças de Teresina fica estarrecido do cipoal de fios por toda parte. De vez em quando um se desgarra e mata o pobre diabo por ele alcançado. Nas residências o problema é constante. Examinem-se os jornais destes últimos cinco anos e a evidência entristece e amedontra. Crianças, maduros e velhos têm sido vítimas dos mortíferos choques da CEPISA. As cidades civilizadas têm os fios da rede elétrica *, nos postes respectivos.

Olegário Barros Almeida, novo presidente da empresa, promete melhorar serviços, pagar os servidores e positivar novos investimentos. Cobrará preços mais justos. Ótimo. Aguardo esperançoso o cumprimento das promessas. Só peço que inscreva no rol do melhoramentos mais humanos de todos: o respeito da CEPISA pela vida do povo sofredor de Teresina. Aleluia.


A. Tito Filho, 21/03/1991, Jornal O Dia - p. 4
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domingo, 20 de maio de 2012

SEMPRE CONTRA

Não se diga que eu desgoste de futebol. Já em Barras, cidade do norte do Piauí, onde me cortaram o umbigo, eu jogava bola quando comecei os estudos primários nos meus sete anos. Eu e os molecotes como eu no beco de velho Fernando Carvalho, sujeito que conheci idoso, cidadão honrado. Abria a loja da esquina cedo, sempre de colete e bonzeguinos, barbicha bem aparada. Tipo respeitável, de fala ligeira, família tradicional. Formava-se os times nos domingos, quando o sol esfriava e a partida só terminava boquinha da noite.

Andei por outras terras e nunca me afastei dos estádios, como em Fortaleza e no Rio de Janeiro. No retorno aos pagos teresinenses, em 1947, encontrei o Estádio Lindolfo Monteiro, se a memória não me engana, construído pelo prefeito do mesmo nome e inaugurado em 1940.

No meio do século, fui ao Rio, num aviãozinho bimotor, que saia de Teresina seis da manha e depois de enjoativo pinga-pinga por algumas cidades, baixava no aeroporto Santos Dumont, da ex-capital, pelas sete horas da noite. Era a inauguração do Maracanã, estadiozão construído pelo prefeito Mendes de Morais, para que, aos urros de sua formidável platéia, houvesse a última partida de uruguaios e brasileiros, em 1950. Assisti ao embate. À derrota nacional. Dois a um em favor dos homens comandados por um meio-campo endiabrado, Obidúlio Varela. Recordei os dias de 1938, nesta sofrida capital piauiense, no tempo do ultimo campeonato mundial de futebol jogado antes da segunda grande guerra. O astro do Brasil o homem de borracha, diamante negro, Leônidas. Os nossos perderam a derradeira partida, em disputa com a Itália, também por dois a um, um gol italiano de pênalti.

Dava gosto o futebol dos velhos tempos. Os craques desconheciam a dinheirama que transformou esse esporte de massa e de entusiasmo num reles balcão de trocas e *. De mim, não perdia jogo dominical em Fortaleza, no Rio. Cheguei a prefaciar um livro de Carlos Said, sobre a história do futebol piauiense, em que figuro como interventor na Federação Piauiense de Desportos, em 1960, quando me possível, com o auxílio de sujeitos capazes e honestos, Péricles * e Eulino Martins, meu tesoureiro e meu secretário, endireitar a entidade mentora do esporte piauiense. Tomei a medida de reduzir o numero de clubes de Teresina a seis. Uma história interessante que ainda ninguém contou.

Mas quando se quis construir o Albertão, estádio enorme de sessenta mil pessoas, fui contra. O único jornalista, o único cidadão, o único brasileiro, o único vivente, contra abertamente, em campanha de jornal e rádio. Insultavam-me. E eu contra. Meu argumento era em que Teresina não podia SUSTENTAR enorme praça esportiva. Os jogos não despertariam interesse público para tantos lugares. Interessante é que, neste ano de 1991, quando mais Teresina aumenta de população, mais a platéia do Albertão míngua de gente. Dídimo de Castro; uma das melhores expressões do velho jornalismo, seca os gorgomilos, todo dia convocando pagantes ao estádio.

Fui contra o Albertão, contra a Poticabana, contra o Metrô, contra os aleijamentos do Theatro 4 de Setembro e da praça Pedro segundo, contra a derrubada da antiga penitenciaria e contra o Verdão.

Sou contra tudo que tira o pão e aumenta a fome do povo.


A. Tito Filho, 23/03/1991, Jornal O Dia - p. 4

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NOVEMBRO FEIO

A pessoa alguma convém testemunhar pessimismo sobre o Brasil. Mas o otimismo tem os seus limites. Não é justo que se adote a crença num país em que as noites e os dias revelam total desagregação de responsabilidades. O desespero prevalece com o seu cortejo de desesperança. Deterioram-se os caracteres. Todas as atitudes negativas se adotam contra o país em que enriquecimento ilícito e a ganância constituem fatos corriqueiros do dia-a-dia, sob denúncias da altivez dos órgãos de comunicação. Os ensinamentos de João XXIII, na sua imensa MATER ET MAGISTRA não encontram acolhida nos governantes nem na compreensão das elites dirigentes. Que pretendeu o Papa admirável na eternidade das suas lições? Queria que os homens SOCIALIZASSEM os bens da vida. A socialização daquelas cousas que fossem as necessidades fundamentais da família, de forma que todos tivessem o lar, o alimento, a educação, a saúde, o pedaço de terra, como filhos de Deus, como criaturas humanas.

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Antigamente o campo produzia. Exportava-se. Juscelino enterrou bilhões de dólares para fazer Brasília, uma cidade cercada de favelas por todos os lados. Os patrícios abandonaram o campo e buscaram as cidades grandes, que hoje suportam dois terços da população, e a zona rural abriga apenas um terço. Os problemas das megalópoles sufocam. Rio, São Paulo, Teresina, Recife mostram crianças famintas buscando restos de comidas nas latas de lixo. As fortunas mirabolantes de poucos afronta a miséria de milhões. A prostituição de meninas de 12 anos tornou-se vergonha nacional. Alta-roda vive de escândalos amorosos. Saqueia-se o país com o conhecimento às vezes de altas autoridades e estas também às vezes praticam os crimes contra os cofres públicos. Vigora o calote oficial. Fecham-se hospitais porque o governo lhes nega o pagamento durante meses. Liquidou-se o sistema educacional brasileiro. Ninguém crê na escola pública, em que professores improvisados se sujeitam a vencimentos infames. Espalha-se por toda parte a escola particular, em que os donos enriquecem e os mestres não recebem fiscalização alguma por parte dos órgãos de governo. Os salários mínimos mal cobrem as despesas de uma péssima refeição diária. Abundam na República imperialista brasileira os chamados marajás, e os tribunais se entopem de parentes e aderentes dos ministros e desembargadores, sem que compareçam ao trabalho, mas percebem contracheques polpudos, da mesma forma que nos gabinetes dos deputados e senadores. O que funciona neste país? Nada, salvo assaltos, vinganças, roubos, tráfico de drogas. A democracia nacional, com milhões de famintos e analfabetos, marcha para o abismo. Recentemente os jornais e as tevês propalaram o superfaturamento de bicicletas, guarda-chuvas, mochilas e sustenta-se que o ministro tinha conhecimento dos fatos passados na Fundação Nacional de Saúde. A acusação parte da exonerada presidenta do órgão. Ao lado desta, verificam-se denúncias de que recursos são atirados fora, atirados aos porcos. e apontam-se repúblicas dentro da República, como escreve a TRIBUNA DA IMPRENSA. Cada ministro, com raras exceções, distribui verbas para o Estado onde nasceu.

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Faz poucos dias, em pronunciamento ao Brasil, o presidente Collor criticou severamente os empresários. QUEM NÃO TEM COMPETÊNCIA NÃO SE ESTABELECE, disse. Se o negócio não rende, deve ser fechado e o dono abrirá um boteco. Achou o primeiro mandatário que se torna fácil liquidar uma indústria ou um comércio e montar um botequim na esquina, esquecendo-se Collor das altas taxas de juros e o aumento constante das matérias-primas. O próprio governo aumenta preços de dez em dez dias. Gasolina, energia, água, telefones, taxas de comércio.

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A imprensa gozou a fala presidencial sustentando também que o presidente não dá conta das promessas feitas na campanha eleitoral. A inflação sobe. Os preços são incontroláveis. Devia pois estabelecer-se com outro negócio.

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Não se resolvem problemas sérios com a mudança de ramo de negócio. Assim seria fácil governar o Brasil.


A. Tito Filho, 24/12/1991, Jornal O Dia - p. 4

PLANO DE LIVROS

Desde 1972 vem a Academia Piauiense de Letras, com dificuldades sem conta, divulgando o livro piauiense. Obras de história, geografia, estudos sociais, romances, contos, novelas, teatro, folclore, não há, no Brasil, instituição que se tenha dedicado mais, com pequenos recursos, mas empregando-os honestamente, do que a referida instituição cultural piauiense. Encontra pessoas de nobre caráter que a ajudam e incentivam. Por preços reduzidíssimos faz entrega das edições aos que as adquirem, prestativos, no exercício de valiosa contribuição.

Dezenas de obras a Casa de Lucídio Freitas entregou ao público, desde que iniciou, quase vinte anos atrás, um efetivo plano editorial, a fim de que estudantes e professores, homens de letras, estudiosos, amantes da leitura séria e útil tivessem a seu dispor as melhores fontes de conhecimento da terra e da gente do Piauí.

São selecionados os livros editados. O ano passado, para citar a mais recente relação de livros, foram publicados e distribuídos pela Academia: MEDICINA E PODER POLÍTICO EM FLORIANO, do médico Bento Bezerra, uma análise da atuação de médicos na administração do importante município piauiense, COISAS E LOISAS, crônicas e memórias de terras sertanejas, de Sátiro Nogueira; UMA FIGURA SINGULAR DE MISSIONÁRIO DO NORDESTE BRASILEIRO, de Frei Memória, biografia de Frei Heliodoro, humilde missionário da caridade cristã em Teresina; UM DRAMA DE CONSCIÊNCIA, novela de suspense do médico Salomão Chaib; MANIFESTAÇÕES MUSICAIS NO PIAUÍ, de Cláudio Bastos, um dos raros trabalhos sobre a arte musical entre nós; CRÔNICAS, de Tito Filho, em declarações de amor a Teresina; ELOGIO DA SOMBRA, de José Maria Soares Ribeiro, crítica de escritores piauienses mortos; MEMÓRIAS DEPOIMENTOS, de Rocha Furtado, documentário político de fase conturbada da história do Piauí; ARTE E TORMENTO, conjunto lírico encantador do poeta Nogueira Tapety, em prosa e poesia; O OITÃO, de Cléia Napoleão, recordações da romântica Teresina de outros tempos; MALHADINHA, de José Expedito Rego, um dos melhores romances de conteúdo social, com cenário da vida rural de Oeiras; A TALHA DE RETÁBULOS, de Dagoberto Júnior, arte e história religiosa.

A Academia adotou dois planos de distribuição de obras: mensalmente, um livro, por preço mínimo de 500 cruzeiros. Ou seis livros, um por mês, de janeiro a junho, pelo preço total de dois mil e quinhentos cruzeiros. O processo como se vê, beneficia os adquirentes, uma vez que o preço se mostra vantajoso, numa época em que o livro cada vez mais tem os custos elevados e de difícil aquisição por parte dos que têm rendas apenas razoáveis; e os desejosos de boa leitura ficam com a obra previamente garantida, sem os riscos do esgotamento das edições.

Neste mês de março, a Academia inicia a distribuição de TIRA-DÚVIDAS. São três pequenos volumes escritos pelo acatado professor Cineas Santos, em que se resolvem as dúvidas freqüentes de grafia e de emprego de palavras. Constituem lições simples, acessíveis a estudantes, a professores, jornalistas, profissionais em geral, a funcionários públicos, secretários, entrevistadores e entrevistados, noivos distantes, poetas, escritores, locutores de rádio e TV, secretários de empresas e de governadores, epistológrafos. Todos necessitam das LIÇÕEZINHAS grandes de Cineas Santos. Sim, é assim mesmo. O plural de LIÇÃOZINHA é como escrevi, LIÇÕEZINHAS. Aprendi no Cineas.

Estas linhas não constituem publicidade comercial, pois a Academia Piauiense de Letras não pretende lucros, mas apenas proporcionar bons livros aos que querem desanuviar a cachola. O objetivo aqui reside em orientar os leitores, com a devida vênia de Octávio Miranda, sempre estimulador do desenvolvimento cultural do Piauí, e dos coleguinhas inteligentes e prestativos que completam este jornal.


A. Tito Filho, 28-29-30/03/1991, Jornal O Dia - p. 4

sábado, 19 de maio de 2012

AINDA GOVERNO E LIVRO

No governo Hugo Napoleão se estabeleceu o Projeto Petrônio Portella, para edição de obras sobre o Piauí e de autores piauienses, numa homenagem ao político que tanto engrandeceu a terra natal, figura impressionante, cujas leituras lhe aformosearam o espírito e a inteligência. No início da vitoriosa carreira, chegou a publicar atos de violência, porque o Piauí ensinava que na violência estava a defesa contra os adversários. Sentimos em Petrônio, quando já ministro o visitamos, mais de uma vez, que cada dia mais ele se compenetrava do papel da cultura, a fim de guiar os homens nos caminhos certas da vida. Maduro e prestigiado nos altos escalões republicanos, não guardava ódios, nem queria malquerenças, vivia de fazer o bem. Deu lições aos maiores parlamentares brasileiros, na tribuna do Congresso Nacional. Sentia tão profundo gosto pelas cousas do saber que autorizou a feitura, na gráfica do Senado, de edições sucessivas dos grandes discursos parlamentares proferidos ao tempo do Império, o que lhe valeu a Medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.

O Projeto Petrônio Portella mereceu execução louvável do secretário Jesualdo Cavalcante, da Cultura. Excelentes livros se distribuíram no Piauí e no Brasil.

O governo seguinte, de Alberto Silva, prestigiou a obra cultural do antecessor. Mantiveram-se as normas do Projeto Petrônio Portella, confiado ao jornalista Kenard Kruel, esforçado e trabalhador.

Em agosto de 1987, o governador Alberto Silva, convocou a Academia Piauiense de Letras para participar desse auspicioso plano editorial. Acertou-se que os recursos se dividiriam entre a Casa de Lucídio Freitas e a Fundação Cultural do Piauí, meio a meio. As edições ficariam subordinadas às duas partes: à primeira, as obras de escritores desparecidos ou vivos considerados úteis ao conhecimento da história piauiense, ou outras, como trabalhos de ficção de autores desaparecidos ou acadêmicos; à segunda competia editar a literatura de novos escritores.

Desnecessário, asseverar que o Projeto Petrônio Portella fracassou na metade do governo Alberto Silva, porque os órgãos responsáveis pelas finanças necessárias ao custeio das edições fugiram, quase todos, dos compromissos publicamente adotados, recusando o pagamento das contribuições. Não lhes interessava senão a politiquice e o desprezo as manifestações culturais da terra.

X   X   X

O filósofo Marcuse ensinou que a sociedade possui três forças de comando: a econômica, a política e a intelectual. A primeira tem a primazia no comando e a ela se subordinam as outras duas. O detentor de grandes cabedais, os donos do poder, os escritores são os tipos que desfrutam de menos prestígio na vida social. O homem se torna escravo do dinheiro e com o vil metal compra mandatos. Satisfaz-se com esses triunfos. Os outros seres humanos contentam-se que os semelhantes lhe rendam homenagem e consideração por intermédio da autoria da obra literária ou de outro conteúdo.

Ao Projeto Petrônio Portella chegavam livros e mais livros de autores de uma triste subliteratura, as mais das vezes, todos apadrinhados ou amanhados. A Academia Piauiense de Letras recusava publicação e arrecadava inimigos. Kenard Kruel achou mais conveniente guardá-los nos arquivos respectivos, pois inclusive a editoração não era possível, uma vez que raros os órgãos governamentais que permaneciam no cumprimento do acordo assinado e chancelado pelo governador em 1990, um só centavo chegou às entidades encarregadas da execução editorial. O mesmo se deu ao brilhante Hardi Filho, sucessor de Kenard.

Morreu, tristemente, o Projeto Petrônio Portella.

O novo governo não pode fechar os olhos para a triste situação cultural do Piauí.


A. Tito Filho, 27-28/01/1991, Jornal O Dia - p. 4

O BONDE

Quando vim de Barras para Teresina, em 1932, já não existia bonde na cidade. Ainda encontrei os trilhos. Conheci esse veículo, do tipo elétrico, em Fortaleza, ano de 1939. Mais comprido do que um ônibus, era do tamanho e da largura de um trem. Quase diariamente eu subia num deles. A gente pisava no estribo, uma tábua do comprimento do carro, de um lado só, e alcançava os bancos de madeira para cinco pessoas. Pelo estribo o chamado condutor cobrava as passagens, dependurado nos balaústres entre os assentos e pulando nos estribos para receber os níqueis dos passageiros.

Encontrei novamente esse transporte civilizado no Rio de Janeiro, começo dos anos quarenta, sempre o servidor dos ricos, a providência dos pobres, a animação da cidade, como escreveu Bilac. Morador de Ipanema, eu viajava nos bondes de preços mais do que baixos, duzentos réis por longos percursos. Defronte da gente, em todos os carros, se lia o cartaz de propaganda de popular remédio da época, em versos: "Veja, ilustre passageiro / O belo tipo faceiro / Que o senhor tem ao seu lado / e no entanto acredita / Quase morreu de bronquite / Salvou-o o Rum Creosotado". Desapareceu o santo medicamento, eu nunca, porém, esqueci os versos pendurados nos bondes cariocas.

Seis horas da tarde, agoniado momento de regresso a casa. Gente que nem formigueiro no centro do Rio. Pessoas apressadas na busca de transporte. São milhares que se acotovelam nos pontos de embarque. Preferência dos bondes, que circulam com lotação excessiva. A minha hora também. Esforçadamente conseguia um lugarzinho no bonde, entre mulheres. Era bom. Quando o carro ganhava velocidade, havia o balanço para a direita e para a esquerda. Dava-se a impressão de que o veículo afastaria dos trilhos. Esquerda e direita e vice-versa, os passageiros acompanhavam a movimentação, pra um lado e para o outro, e alguém podia fugir ao rolar de coxas e de braços nos braços e nas coxas da garota ou da balzaquiana ao lado da gente, e o esfrega-esfrega era chamava de bolinação, termo de náutica. Assim à bolina correspondia ao fato de o navio estar inclinado. De termo do mar, passou aos sacolejos dos bondes e ainda, na escuridade dos cinemas, aos amassamentos e beliscos nos seios. Era bom bolinar as namoradas.

Deixei o Rio e à cidade maravilhosa retorno em passeio algumas vezes até que, em 19* não encontrei os populares bondes do meu tempo, veículos despoluídos, de passagem barata, românticas, higiênicos, de viagens propiciadoras de namoros inesquecíveis. Foram desativados, por determinação do poder econômico. Contra eles se fez censuras me*sas, acusados de atrapalhação do trânsito, mas a idéia estava em privilegiar os veículos a gasolina, dispendiosos e poluidores, um excesso de exploração das empresas de ônibus.

Leio agora no jornal carioca "Tribuna da Imprensa" que os bondes vão voltar. Grande idéia. Maravilhosa demonstração de bom senso das autoridades. E com eles retornarão os dias felizes de antigamente no transporte de enormes cidades brasileiras.

Tenho saudades dos velhos bondes da Light, companhia inglesa que os mantinha. Uma graça esses bons veículos no momento do RUSH. Bancos completos de passageiros, a gente imprensado entre duas garotas, aventura gostosa de coxas unidas e braços roçando no carro. Uma gostosura dos velhos tempos românticos.


A. Tito Filho, 16/03/1991, Jornal O Dia - p. 4

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*Não está visível no original

GENTE IMPORTANTE

Quando chegava gente importante a Teresina, era um deus-nos-acuda. Alvoroço nas camadas sociais ilustres. Terno branco, engomadíssimo, sapato engraxado, camisa limpa, gravata bonita, assim ficavam os machos. As damas botavam o melhor vestido, perfume afrancesado, pulseiras ricas. Plantavam-se todos no local do desembarque da figura esperada com ansiedade. Banda de música. Nos velhos tempos, fazia-se o cortejo, a pé, à casa da hospedagem.

No caso dos presidentes da República, os preparativos da recepção começavam dez ou mais dias antes da chegada. Assim se deu com Afonso Pena, eleito para governar o Brasil. Antes da posse, visitou o Piauí, chegando a Teresina a 14 de julho de 1906, pelas 10 horas da manhã. Recebeu homenagem estrondosa. Ao alcançar a igreja de São Benedito, penetrou o templo, ajoelhou e rezou. Seguiu para a Chácara Lavinópolis, do farmacêutico Collect Fonseca, esquina da avenida Frei Serafim, local hoje de posto de gasolina. Regressou no dia seguinte; as cinco da tarde. Dormiu uma noite só, com penico de porcelana no quarto - um penico de pinturas elegantes, que se esqueceram de guardar para o futuro museu.

Nilo Peçanha veio ao Piauí, mas já se havia despedido da presidência. Desempenhava o mandato de senador e pleiteava voltar a ela... Pronunciou conferência no Teatro 4 de Setembro. O eleito chamava-se Epitácio Pessoa, que derrotou Nilo.

Chegaria a vez de outro grandão - agora Getúlio Vargas, diretor eminente, que veio ao Piauí a primeira vez em 1933. Viagem pelo Maranhão, atingiu Teresina por Flores, hoje Timon, depois atravessar o Parnaíba. Percorreu a rua Teodoro Pacheco até o palacete de dois andares do médico Freire de Andrade, no principio da avenida Antonino Freire, esquina da praça Pedro II, mesmo local do Palácio de Karnak - e aí se hospedou, no quarto de cima, de frente. Saudado por Martins Napoleão. Banquete em Karnak, de noite. O povo permaneceu no meio da via pública, furando a madrugada embevecido, extasiado de ter Getúlio a dormir na capital piauiense. Na qualidade de candidato à presidência da República, o grande gaúcho visitaria Teresina em 1950.

Intensas paixões partidárias distanciavam os políticos do PSD e da UDN no Piauí. Na capital a imprensa mais alimentava ódios e malquerenças. O presidente Dutra, pessedista, passou alguns momentos no aeroporto de Teresina, onde conversou com o governador (Udenista) Rocha Furtado, mas não aceitou homenagens nem quis visitar a cidade, que eleito, conhecia. Temeu que os correligionários ficassem aborrecidos.

Outros presidentes vieram até cá - Juscelino, Jânio (como candidato), Goulart, Castelo Branco, costa e Silva (candidato), Médici, Geisel, João Batista Figueiredo.

A cousa foi-se tornando corriqueira.

Ninguém mais se abala com visita presidencial.

Sarney conheceu demais a nossa Teresina.

 
A. Tito Filho, 16/05/1991, Jornal O Dia - p. 4

sexta-feira, 18 de maio de 2012

VESTIBULAR

Sobre o chamado exame vestibular para acesso às universidades brasileiras já escrevi algumas crônicas publicadas em humildes livrinhos. Nelas digo que anualmente milhões de jovens de ambos os sexos buscam o cobiçado título de doutor, no país em que se assentou o preço do triunfo num anel de grau. E haja anel de grau para todos os dedos, como se ele conferisse o respectivo mercado de trabalho. Criou-se a mística da universidade.

A verdade é que a juventude não estuda. Freqüenta cursinhos, que, bem ou mal, procuram realizar o seu trabalho preparatório, suprimido o péssimo ensinamento das escolas.

O exame vestibular se fez com a utilização de testes. Os candidatos vivem verdadeira tormenta memória. Os testes semelham quebra-cabeças em torno dos quais gravitam moças e moços, que, durante meses, andam pelas ruas, cadernos debaixo dos braços, com o pensamento no exame reprovador:

Quem descobriu o Brasil? 1) Foi você? 2) Foi Pedro Álvares Cabral? 3) Foi Pelé? 4) Ninguém até hoje descobriu o Brasil?

O candidato lê duas vezes os quatros caminhos. E conclui, depois de muito suor: eu nunca descobri cousa alguma, logo não descobri o Brasil. Mas alguém o descobriu. As perguntas 1 e 4 ficam exoneradas, portanto. Tenho certeza de que Pelé se encontra na história do futebol. Resta Pedro Álvares Cabral. Xis nele.

Há necessidade de novos rumos. Os escritores escolhidos para as provas nunca foram lidos pelo candidato. E quanto este, por através de conhecimentos de televisão, acerta o nome do autor de Capitães de Areia, nunca leu o livro e desconhece o grave problema social que o livro agasalha, como uma reportagem viva, no universo do seu regionalismo.

Os moços deixaram os livros, não lêem, pois consideram desnecessário o estudo e a leitura. O candidato ao doutoramento sabe que tudo se resume na arte e habilidade de decifrar testes. Melhor a revista de quadrinhos e de sexo, ou livros de violência. Machado de Assis passa a ser um sujeito tolo e chato que andou falando da vida alheia. O teste suplantou a cultura nas suas variadas manifestações.

Ainda vive o Brasil subservientemente com a exigência da língua estrangeira no vestibular, como o inglês, ou outra que seja. Que necessidade tem o doutor de saber inglês? E por que não se exigem o alemão, o italiano, o russo, o holandês, o chinês?

O inglês se revela tão necessário a um doutor brasileiro como a primeira cueca que ele vestiu. O inglês pode participar da cultura especializada de quem quer que seja, nunca de maneira obrigatória da compostura intelectual de ninguém. Argumenta-se que as grandes obras para a formação de um doutor sejam escritas em inglês, ou francês, o que não corresponde à verdade. Mas se fossem, essas obras poderiam existir também em tradução portuguesa, como existem traduções de obras alemãs, italianas, russas, espanholas. A própria "Divina Comédia", de difícil tradução, está traduzida.

Nem doutor turista necessita de inglês, ou francês. Em toda parte do mundo existem guias e intérpretes.

Será que na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França se exige português nas provas de ingresso nas universidades? Eis aí assunto para um teste do próximo vestibular brasileiro.

 
A. Tito Filho, 15/01/1991, Jornal O Dia - p. 4

INCOMPETÊNCIA

Muitas causas se apontam como justificativa de um Brasil cujo povo padece aflições sem conta. Abandonou-se o campo e criaram-se as megalópoles das populações sofridas - cidades imensas com insolúveis problemas de lixo, de água, de higiene, cercada de favelas por todos os lados, em que prevalece afrontosa e condenável promiscuidade. No campo, vigora idêntico modo de viver. Gente sem terra, faminta, desnutrida, sem escola. Revoltante as circunstâncias de que 80 ou mais por cento da população brasileira não participam da riqueza nacional e faltam-lhe os bens primários da existência. O Brasil de 50 anos atrás era outro. Embora o atormentassem dificuldades, funcionavam as escolas públicas, providas de professores capazes e sérios; os hospitais atendiam dedicadamente os que os procuravam; havia solidariedade humana; desconhecia-se a violência urbana e a rural. Inexistiam classes privilegiadas e os governantes, com raras exceções, administravam com rigorosa honestidade, servidos de auxiliares competentes e probos.

Que houve com o Brasil? A construção de Brasília iniciou o processo inflacionário permanente. Liquidou-se o transporte ferroviário e o de cabotagem, em beneficio dos veículos automotores, consumidores dos derivados de petróleo e vendidos por gigantescas empresas norte-americanas. Desapareceu o bonde para que os ônibus tivessem vez. A propaganda do luxo e do conforto, a principio pelo cinema, de forma subliminar, tornou-se permanente na televisão, instrumento perigoso dominado por empresas particulares e responsável também pela extinção do salutar regionalismo brasileiro. Criou-se o soçaite dos milionários cujas fortunas não têm origem senão pelo sistema exploratório e pelo processo da corrupção.

São várias as causas do empobrecimento e do sofrimento da imensa maioria dos nossos patrícios, às quais se deve acrescentar a incompetência, aliada a outros fatores. É grosseira a incapacidade dos homens públicos, com exceções honrosas, desde que o dinheiro a eleger os políticos e a demagogia tem sido a tônica da maior parte dos que buscam cargos importantes, protegidos eleitoralmente por empresários gananciosos.

Tivemos homens públicos respeitáveis no primeiro como no segundo império. Outros, patriotas, insubornáveis. Quantos cidadãos atingiram fama e projeção pelos ensinamentos, pela lealdade e probidade, pelas atitudes e respeito que sugeriam. Na República, os homens que administravam o país até o primeiro período de Getúlio Vargas gozavam de consideração popular. Os Estados foram confiados a oficiais das Forças Armadas, alguns inexperientes, mas de honestidade irrecusável. Parece-nos que a incompetência teve começo na ditadura getuliana, inaugurada em 1937. Daí para diante ainda se anotavam brasileiros ilustres na chefia dos Estados e dos ministérios. As ditaduras, porém, sobretudo quando se alongam, chafurdam na violência, na perversidade e no capachismo. Retornou-se às eleições de presidentes e congressistas, seguidas da escolha de governadores e legisladores nos Estados. Floresceram ambições. Firmaram-se conluídos. A politiquice dominava o país. Por toda parte no país e nas áreas federais, não mais se firmava o município da competência e da probidade na escolha de auxiliares, mas exclusivamente o critério da política partidária.

A incapacidade viceja por toda parte. Existem titulares ministeriais, de secretariado, de reitores de órgãos públicos sem conhecimento dos assuntos dos cargos que lhe são entregues. De certo tempo aos dias atuais o mal cresceu, multiplicou-se. Alguns brasileiros, exerceram vários ministérios - Educação, Justiça, Trabalho -, como se fosse possível conhecer os problemas de setores diferenciados em tudo, sobretudo quando o titular pertenceu as Forças Armadas. Transferem-se administradores de uma pasta a outra como se o exercício das responsabilidades se considerassem de menos importância no trato da função pública.

A incompetência alastrou-se como doença infecciosa. Atinge o funcionalismo de todos os níveis, pois varreu-se da órbita administrativa o concurso. A administração, nas mais diversas áreas, como assessores, conselheiros, chefes de gabinete - os cunhados, os sogros, os filhos e filhas, os genros, toda a constelação familiar do detentor do cargo importante.

Ministros, secretários bem aquinhoados revelam ignorância até nos pronunciamentos televisionados. Assassinando a língua pelo torto e pelo direito.

O Brasil pode dizer-se um deserto de homens e de idéias, como queria Osvaldo Aranha, bem assim de incompetência dos seus homens públicos, excetuadas as raridades dignas de respeito.

 
A. Tito Filho, 14-15/07/1991, Jornal O Dia - p. 4

TEMPOS DE MEMÓRIA (2)

Quando eu deixei Teresina, em janeiro de 1937, havia uma novidade em caminho: o telefone. Operários armavam os cabos duplos nos velhos postes de ferro, sob o comando de um engenheiro alemão ou sueco, louro, vermelho, suado e em mangas de camisa. É claro que, entre as penas que levei comigo, ao tomar em Flores o trenzinho, figurava essa de não assistir a inauguração do telefone. Teresina, que acabava de ajardinar mais uma praça, a Pedro II, e embelezar a pequena avenida em frente ao Palácio, progredia. E progredia no exato momento que eu me ia embora.

Isso não só era irreparável porque eu, como a maioria dos jovens que deixavam a terra natal, pensava em voltar. Voltar para viver ali, naquele chão da infância, em meio àquela gente que sonhava intensamente e que se recusava a crer na própria pobreza.

Deixei a cidade impregnado dela, dos seus sonhos modestos e do amor à sua condição. No trem, recitava os versos de Lucídio Freitas: "Teresina apagou-se na distância / ficou longe de mim adormecida...". E me lembrava do poeta Celso Pinheiro a contar a meu pai que, em São Luís, que visitava um dia, ficara tão inconformado por estar distante da sua terra que tinha saudades até das folhas que caíam das árvores de seu quintal.

Teresina, que aos nossos olhos ingênuos se afigurava quase que como uma metrópole, era uma pequena cidade, de trinta a quarenta mil habitantes, se tanto, com casas de telha em sete ou oito ruas e um vasto casario de palha, informe, sem conforto, que abrigava dois terços da população. No entanto, era doce o convívio da família e dos vizinhos, era doce a cidade. O calor, que só vim a perceber mais tarde, não deixou marca na minha infância nem na minha memória. Ele não existia para quem levava a vida solta dos quintais e das ruas, nos regatos que se formava depois das chuvas, nas carrerias noturnas pelos caminhos de terra e capim, no futebol da "bacia", nas brincadeiras que nos conduziam da beira do Parnaíba à beira do Poti.

Entre a rua da Estrela e a rua são José, passando pelas ruas da Glória do Amparo, dos Negros, do Fio, rua Grande, rua Bela e Paissandu - belos nomes que deveriam ressurgir - estava a cidade, toda ela, para as pessoas da nossa condição social. A Avenida Frei Serafim, hoje Getúlio Vargas, era uma promessa e um abrigo para as famílias mais prósperas. Ainda hoje identifico na memória as casas, uma a uma, e as famílias que as habitavam, parente, amigos, conhecidos.

Desconhecido era então só o caixeiro-viajante que se hospedava por algumas noites no Teresina Hotel.

A vida, já se vê, era simples e íntima. O Governador Joca Pires, à noite, sentava-se num banco da Praça, cercado de amigos e das pessoas de prol. lá a retreta, como os outros, o professor, o juiz, o estudante, a mocinha. Ouviam-se as mesmas histórias e a mesma música tocada no coreto pela banda militar.

Havia um único clube, o dos Diários, mas se dançava em qualquer casa onde houvesse moças. No mês que antecedia o carnaval, cada domingo depois da missa das nove na Igreja do Amparo, Joel Oliveira, cabeça branca, e um senhor que tinha o apelido de João Senhora, porque usava leque, e se assinava Carlos Borromeu nos escritos da imprensa local - comandavam os "assaltos" com que se esquentava a cidade para a grande festa. O carnaval era um misto de danças, cordões, corso e divertimento intelectuais, pois se editavam jornaizinhos humorísticos em que se  punha todo mundo na berlinda.

Folguedos populares eram poucos. Havia irrupção de "marujos" no adro das igrejas na Semana Santa e o "bumba-meu-boi" dos bairros distantes na época de São João. E as novenas, com prendas, e os mafuás. No Natal, havia o presépio de dona Quequé, que a cidade inteira ia visitar.

A cidade tinha sua alma e seus intérpretes, poetas e escritores, gramáticos, professores. Geração de bacharéis formada no Recife sob a égide de Tobias Barreto e Sílvio Romero - na qual se integrava entre os mais jovens meu pai, o Desembargador Cristino Castelo Branco, que mantinha o teor do debate intelectual, discutindo em saraus e conferências, reuniões da Academia Piauiense de Letras, na Maçonaria e até em Igrejas, onde pelo menos uma vez o padre teve seu sermão contestado. Mestre Higino Cunha, venerável, que ensinava latim e tocava piano, mantinha acesa a chama e reunia em torno de si escritores e estudantes. A nós, transmitia algo da sua imensa cultura, inclusive o modo de beber e a cronologia dos drinks e dos vinhos. Professor, e a cerveja? 
  
Perguntou-lhe um rapaz ao fim de uma dessas lições. Imperturbável, mestre Higino Cunha respondeu: "Cerveja, meu filho, é refresco. A gente bebe o dia inteiro".

Nem tudo era amenidade na Teresina daquele tempo. A agressividade explodia nas polêmicas jornalísticas, nos panfletos, nas campanhas políticas. Mestre Higino escrevia a "história do Pai do Jumentão" ou soltava boletins contra pessoas que profanavam a loja maçônica; vade retro Satanás... 


A. Tito Filho, 08/08/1991, Jornal O Dia - p. 4