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segunda-feira, 30 de abril de 2012

TEMPO DE RUMINAR

De primeiro o pessoal se formava em Medicina, engenharia e Direito, também em Odontologia e Farmácia. Era só. Famosos os bacharéis da Faculdade do Recife e os médicos da Faculdade da Bahia. Engenheiro, cousa rara. Criaram-se depois os cursos de filosofia para o preparo de professores. Difícil encontrar veterinário. Agrônomo constituía animal raro. Com a instituição das universidades, nas capitais, nas grandes cidades, nas pequenas coletividades - às vezes quatro ou mais no mesmo centro populacional, a tradição de doutores se tornou problema sem solução, por causa da ociosidade desses milhares de novos médicos, advogados, engenheiros, dentistas, boticários e professores sem mercado de trabalho. Não se cumprem os objetivos universitários mais importantes: a preparação das lideranças e a educação integral da coletividade. A escola superior mal prepara centenas e centenas de profissionais ano por ano.

Milhões de analfabetos povoam o território nacional. Meninos doentes, famintos, sem roupa, sem transporte. O ensino médio cada dia mais se desacredita. As escolas oficiais não ensinam nem educam. As particulares exploram e engordam os proprietários ricos e poderosos. Dá-se o Brasil o luxo de criar universidades acessíveis aos jovens milionários que podem pagar a peso de ouro cursinhos preparatórios de perguntas e respostas empacotadas, como se cultura a gente pudesse comprar na quitanda da esquina.

Dizem os maledicentes que o Piauí não dá alfaiate, garçom e governador que prestem. Nem tanto. Alfaiate constitui tipo profissional exclusivo de grandes empresários, ministros, presidente da República, e dentre estes últimos se deve citar Sarney, usador de antiquados paletós de seis botões, o velho jaquetão. Conheço alguns garçons de bom serviço, educados e bem postos, sobretudo os que se aprumam no dinner-jacket, como se estivessem enfeitados para um réveillon de clube dos granfas. Quanto a governantes, o Piauí tem dado alguns de bom desempenho. Mas seria honesto que as universidades nacionais preparassem alfaiates, garçons e governadores e também mulheres cortadoras de pano, garçoas e governatrizes para abastecimento dos Estados ditos membros da República Federativa.

Igualmente as centenas de universidades espalhadas até no arraial de Pendura Saia poderiam preparar com esmero pichadores de paredes e cassadores, motoristas, trocadores de ônibus, passistas de escolas de samba, estripitiseres, policiais, garis - e até que se criassem escolas para que pistoleiros matassem sem violência, de modo afetuoso, e que remarcadores de supermercados fossem mais humanos e dono de boi tivesse mais pena da gente.

Enfim, o Brasil deve cuidar do ensino das humanidades - aquele ensino que preparou gerações e gerações de moços de futuro certo e promissor. A universidade tem outra finalidade, nunca a de fabricar homens para a mendicância de empregos públicos, humilhados de uma vida vazia, sem caminho, sem triunfo - o triunfo da utilidade pelo trabalho construtivo.

É tempo de ruminar sobre estas inofensivas considerações.


A. Tito Filho, 17/05/1991, Jornal O Dia, p. 4

COMENTÁRIO

O presidente George Washington costumava dizer que não existem nações amigas, mas nações interessadas na exploração de outras. Pura verdade. Em 1929 os Estados Unidos estiveram em espantoso sufoco financeiro. Houve a quebra da chamada bolsa. O CRAQUE. Faliram os bancos. Desemprego em massa. Miséria por toda parte. O jeito estava em buscar riquezas alheias. Sabia-se que o Brasil queria derribar um presidente, em 1930, e substituir as oligarquias. Os norte-americanos não tinham alimento mas tinham armas. Fácil foi apoiar a rebelião dos militares e de Getúlio Vargas, apear Washington Luís do poder e criar o QUINTAL brasileiro. Dominaram o país. A propaganda cinematográfica do automóvel, do turismo, da roupa feita, da viagem de turismo, da cozinha eletrificada, do uísque para as coronárias, dos enlatados, das festinhas, dos concursos de misses, dos cassinos luxuosos. Iniciou-se o império da gasolina e dos estradões asfaltados. O transporte barato do trem desapareceu. Passou-se ao ônibus bonitão e poluidor. Liquidou-se a navegação de cabotagem, tão útil e tão módica no transporte de mercadorias. O governo Dutra adquiriu todo o estoque de ioiôs da produção estadunidense, gastando imensas reservas cambiais. Dava gosto ver nossas crianças e adolescentes na prática desse besteirol da matéria plástica que nos sugou riquezas sem conta. Nossas caboclinhas aprenderam a mostrar os bumbuns nas espertezas dos desfiles de beleza. Juscelino incentivou a criação de um empresariado ganancioso e malvado. A produção em massa de automóvel afastou das cidades o popularíssimo bonde, barato e de agradável andança. E provocou loucura na classe média, na professorinha de pouca renda, que compra o carro e não pode comprar o sustento do combustível. Instituiu-se a civilização do elevador de fabricação norte-americana e o Rio, São Paulo, Belo Horizonte se transformaram em selvas de pedra, com as respectivas tragédias do pobre homem brasileiro.

A tragédia nacional pode ser observada nos programas televisivos. Violência, perversidade, megalópoles de problemas mil, fome, moradias desumanas, escola falida, cárceres entupidos e perversos, dia-a-dia de angústias e desesperanças.

Que funciona neste país? A jogatina oficial, a que brevemente se incorporarão os cassinos. Loto, loteca, sena, raspadinha, bicho. Desde que acorde até que dorme vive o brasileiro da sua fezinha, contribuindo para a POBREZINHA Caixa Econômica Federal, que cobre juros legais quando empresta os seus trilhões. O país vive de roubalheiras, de fraudes, de peculatos, de maracutaias. Ministros, desembargadores, altos funcionários têm dinheiro à tripa forra, enquanto 90% dos patrícios são obrigados a uma existência mais miserável do que os felás egípcios.

Sucedeu-se [sic] os governos e sempre e cada vez mais o país afunda no fosso da podridão moral. Vinte anos houve de uma ditadura criminosa que realizou muito no terreno da castração de direitos e na execução capital dos adversários. Depois dela, o povo, nas urnas, elegem o presidente Fernando Collor, com graves e grandes promessas de recuperar o país e socorrer os pobres diabos. Brevemente o governo atual, a 15 de setembro, completará um ano e meio no comando administrativo e nada se viu senão um regime inflacionário sem tampa e sem fundo, como penico de português, e a intensificação dos maiores e menores problemas do país, que, por força dos norte-americanos, trocam a sua riqueza agropecuária e agrícola por uma industrialização sem mercado interno e externo.

Ilegalmente, tomaram-se os depósitos dos brasileiros e nada se conseguiu. O país continua à matroca, sem governo sério e sem jeito de solução das suas mínimas dificuldades.


A. Tito Filho, 20/08/1991, Jornal O Dia, p. 4

sábado, 28 de abril de 2012

POETA SINCERO

Em Francisco Hardi Filho, meu colega de superior inteligência na academia Piauiense de Letras e que, velhos amigos, trabalhamos juntos no Ministério da Agricultura, cada qual mais entendido em burocracia agrícola e pecuária, ele companheiro competente e de caráter nobre - Hardi escreve poemas originais que correspondem ao sentimento do mundo, sim, ao sentimento das fisionomias humanas e sofredoras e dos aspectos filosóficos nas atitudes do homem angustiado. Oferece lições de amor ou a amarga presença da violência e da desalegria. Tem versos soprados por Deus. No seu livro o SUICÍDIO DO TEMPO, agora entregue ao público, de ritmos e sentimentos, revela-se um dos melhores intérpretes da vida.

Dele, da sua amizade, simples, recebo com data de 10 deste maio sem flores nos jardins desertos de Teresina, a carta em seguida transcrita:

"Presidente Tito Filho".
Solicito a gentileza do mestre e amigo, na publicação, em espaço jornalístico de sua responsabilidade, deste meu agradecimento público pelo apoio da nossa Academia no lançamento, dia 04 de maio último, do meu livro SUCÍDIO DO TEMPO. Por esse intermédio quero agradecer aos inúmeros amigos, familiares, autoridades, colegas de Academia, companheiros de literatura, e demais pessoas gradas que compareceram, honrando-me com as suas presenças, inclusive o advogado e escritor Ozildo Batista de Barros, brilhante apresentador da obra.

Aproveito também para o agradecimento à imprensa em geral, órgãos de comunicação de Teresina que nunca me faltaram com o espaço e a divulgação necessários nessas oportunidades.

No ensejo, se permitido, quero, ainda, mandar um recado aos meus possíveis leitores de Teresina: precisamos evoluir, preservar tradições humanas, sociais, históricas, mas largar de vez atitudes provincianas que só refletem atraso.

É certo que o artista deve fazer sua arte chegar ao povo, mas no plano da produção, do trabalho sério e de qualidade. Isto muitos estão fazendo. Entretanto, o escritor principalmente, como vem ocorrendo até agora, não pode nem deve continuar saindo com os seus livros na sacola, a implorar aqui e ali a compreensão de um, a benemerência de outro. É triste mas é verdade, poucos são ainda os que se apercebem da enorme diferença que existe entre o ofício do escritor e o do vendedor ambulante de livros, embora na prática os trabalhos se igualem em necessidade e importância.

Não esperemos que o livro piauiense chegue até nós; vamos ao encontro dele. Vamos inverter a situação crônica que se depõe contra os nossos foros de civilização. Desta ação, da leitura, da crítica competente e honesta, muito se beneficiará a produção literária do Piauí.

Quanto ao meu trabalho, houve bastante divulgação. Muitas pessoas na rua perguntam pelo livro. Eis mais um objetivo deste comentário. aos interessados em adquirir (e ler) SUICÍDIO DO TEMPO, informamos que o livro pode ser encontrado na Livraria corisco I e II, na Academia Piauiense de Letras e na União Brasileira de Escritores, secção do Piauí, Palácio da Cultura.


A. Tito Filho, 11/05/1991, Jornal O Dia, p. 4

sexta-feira, 27 de abril de 2012

NAMORADOS

No meu tempo não havia estas datas comemorativas, os dias disto e daquilo: dia das mães, do papai, do vovô, da vovó, da criança. Cada ramo profissional tem o seu: dia da aeromoça, dia do comerciante, dia do comerciário, da meretriz, do funcionário público, do motorista. A indústria e o comércio deveriam criar outros, como o dia do netinho, da titia, do coveiro. Que tal uma data que lembre as COROAS, mulheres que deram o tiro na macaca e que são as mais apetitosas rabos-de-saia da paróquia? Por extensão, também se assinalava a data homenageadora das BONECAS, outra das DONDOCAS. O dia-guei e o dia-sapatão. Nestes dois últimos as vendas seriam espetaculares.

A 12 de junho festejou-se o dia dos namorados, o que não acontecia alguns anos atrás. Também já não se namora como antigamente, o casalzinho de mãos dadas apenas para que o público visse tanta inocência nas praças animadas das retretas musicais, ou no uso de certas bolinações na penumbra dos cinemas.

Nos tempos atuais as farmácias estiveram repletas de moços e moças na compra do melhor presente para os receios de cada qual: as camisinhas. Módicas de preço e de resultados mais ou menos seguros nos motéis que já estão cobrando por minuto de ocupação das camas redondas e filmes de ensinança pornográfica.

Minha primeira namorada foi uma matutinha muito alva, filha de latifundiário do antigo Marruás, hoje Porto. A menina com os pais comparecia nos festejos de Nossa Senhora dos Remédios. A gente dançava mal nos bailes de primeira que iam das dez da noite às duas da madrugada. Amor platônico, que a gente não sabia ainda das senvergonhices da vida.

Já taludo, consegui em Teresina namorar um morenão cheio de carnes, cabelos negros, bonita como quê, e ao lado dela, assistindo a filme de amor, aprendi a arte sublime da bolinação, como se dizia o pegamento nas saliências do colo bem feito. A garota também sabia adotar as suas liberdades provocativas.

E segui o meu destino de namorador constante, e vivi momentos inesquecíveis e deliciosos. Foram tantos. Mas a gente ficava nessas primícias encantadoras dos primeiros contactos. Avançava-se um pouco, e mais não se fazia nem se tentava, salvo se quisesse descontar o vale e sujeitar-se ao casório infalível.

Hoje se namora de modo diferente. Extinguiram-se as virgens, feitas as exceções ilustres e de praxe. Os namorados buscam as tardes e as noites nos motéis, ou nos relvados das praças esquecidas, ainda nas areias das coroas dos rios, no tempo de estio, também debaixo dos pés de pau. E nos automóveis todo tempo, em posições dramáticas.


A. Tito Filho, 18/06/1991, Jornal O Dia, p. 4

ANTIGUIDADES

A história de Teresina guarda muita cousas pitorescas e inesquecíveis. Abaixo se relacionam algumas:

PIPIRAS. As pipiras viveram no tempo da fábrica de tecidos, assim chamadas porque merendavam bananas. CURICAS eram as empregadas domésticas, que não se sentavam à mesa dos patrões, mas recebiam o prato de comida por cima do peitoril que separava a sala de refeição da pequena área descoberta no interior da casa. Manoel Joaquim, conforme me contou o fabuloso Antônio Sales, testemunha ocular da velha Teresina, realizava o baile das curicas. Havia ainda o concurso de misse curica. FREGES. Vendiam bóias fartas e saborosas em alguns pontos da cidade. REFRESCOS. A garapa de cana procedida de São Joaquim e Acarape, em ancoretas e cabaças. Comprava-se o caneco com um pedaço de beiju. Dias festivos, na porta do Teatro 4 de Setembro ou dos arcos, vendiam-se manuês, arroz-doce, jenjibirra, frito de porco, frutas e outras guloseimas. MATINÊS. Antes da luz elétrica, os bailes se realizavam de tarde, a partir do meio-dia, porque de noite a iluminação se fazia de lampiões acesos de tardezinha e apagados às dez da noite. CHAFARIZES. Funcionavam na rua da Glória (Lisandro Nogueira), na avenida Frei Serafim, na antiga rua Santo Antônio (Olavo Bilac), no Bairro São João, no Largo do Poço (praça Landri Sales). BANHOS. Os homens tinham os chamados portos para banho: o Pau-d'Água, em frente à atual praça Da Costa e Silva, e os das Tabocas, abaixo da ponte metálica. QUITANDAS. Bem sortidas. Carne-de-sol, porco salgado, toucinho, banha derretida, bacalhau, sardinha portuguesa, pães de massa grossa e sovado, manteiga proveniente da Europa em latas grandes, vendida no retalho. E deliciosos vinhos portugueses. CALÇAMENTO. Conta-se que o primeiro calçamento de Teresina foi obra de Domingos Monteiro, intendente e prefeito três vezes. Ruas apenas empiçarradas. No verão se levantava muita poeira, chamada PÓ MAMBIRA, pois a irreverência popular apelidara o administrador de Mambira. Conheci Domingos Monteiro, cidadão honesto, trabalhador, culto e dedicado aos problemas da cidade. QUITUTES. Muito apreciados: os rebuçados de dona Loló, as cocadas da Totonha, a panelada da Luziana, o assado de panela do Filomeno, o cuscuz do João Olegário, os refrescos de pega-pinto, os bolos de dona Quequé, os sorvetes do Café Avenida, as empadas do Manuel Português, as mãos-de-vaca do Doutor. O Bar Carvalho servia filé e fígado de grelha de sabor ainda presente na saudade de quem os comeu, feitos por Gumercindo, Guimarães, José Bebé, Ludgero e o auxiliar Mundico. MATO. Batia-se o mato das ruas duas ou três vezes por ano. Quando não se conseguiam operários, os serviços se confiavam aos presos da penitenciária. ENTERROS. Os caixões se levavam a mão por carregadores ou pessoas amigas do defunto. Gente rica pagava mais, com direito a banda de música: os adultos, marcha fúnebre, valsa para as moças virgens, dobrados para os rapazes. Principais funcionários das funerárias: Anísio Veras e Benedito Caixão.


A. Tito Filho, 18/04/1991, Jornal O Dia, p. 4

CINEMA

Diz-se que a primeira exibição de cinema em Teresina se verificou em 1901, no Teatro 4 de Setembro, de A. F. Nauman, seguindo-se Bernardt Blum. Apenas quadros animados. Em 1906, houve cenas exibidas por Moura Quineau e R. Coelho. Seguiram-se os espetáculos de 1908. Adiante, 1910, muita variedade de filmes mudos atraiu boas platéias. Pedro Silva, grande animador da vida artística da capital, também manteve casas cinematográficas. Antes de 1930, inaugurava-se o Cinema Olímpia, na praça Rio Branco, e em 1933 os irmãos Alfredo e Miguel Ferreira dotavam a cidade de filmes falados, exibindo-se "Doce como Mel", norte-americano, com Nancy Carrel.

Na década de 30 a risonha capital do Piauí possuía três cinemas - um tipo poeira o "Royal", bancos de madeira, sem encosto, situado na rua Simplício Mendes, no lugar onde  hoje se encontra casa comercial. Tinha a especialidade em filmes seriados, em que o mocinho realizava pulutricas incríveis. Seis semanas duravam as exibições, uma série de sete em sete dias. Também passavam películas de bangue-bangue, Tom Mix, Buck Jones e outros heróis da época. Superlotava-se na sessão dominical das seis da tarde. A molecada assobiava a valer.

Os outros dois eram de elite. O "Olímpia", na praça Rio Branco de sessões chiques às 20 horas. Dias de domingo, as senhoras da alta-roda e os maridos engravatados enchiam a comprida sala de espetáculos. Bons filmes mudos. Artistas famosos. Pertencia ao carcamano Budaque. Na praça Dom Pedro II funcionava o Teatro 4 de Setembro, da empresa Ferreira Irmão, propriedade de Miguel e Alfredo, inaugurado em 1933 com a introdução do cinema falado em Teresina. Freqüência da melhor sociedade.

Nos dias de segunda-feira o "Olímpia" oferecia entrada gratuita às normalistas fardadas, o que acontecia no 4 de Setembro, nos sábados.

Na década de 40, com o desaparecimento do "Royal" e do "Olímpia", surgiram o "Rex", de certo luxo, o "São Luís", rua 13 de Maio, frente para um dos lados do Clube dos Diários, também requintado, ambos de freqüência das camadas ilustres, e o de segunda classe, denominado "São Raimundo", na Piçarra, zona do meretrício nesse tempo. Dos três, ainda funciona o "Rex".

Em setembro de 1966, inaugurou-se o "Royal", segundo deste nome, da melhor categoria, infelizmente desaparecido.

Os anos correm e construiu-se o cinema do Centro de Convenções, parece que desativado. Inaugurou-se ainda o Cinema de Arte, fechado, segundo afirmam, por falta de apoio oficial.

De quantos existiram, dos anos 30 aos nossos dias, resta o "Rex", impávido, na praça Pedro II.

Pena que Teresina esteja abandonada relativamente a uma das melhores diversões criadas pelo homem.


A. Tito Filho, 16/04/1991, Jornal O Dia, p. 4

PRIVILÉGIOS

Sinceramente, a mulher gozava de muitas regalias e perdeu-as com a história do feminismo. É verdade que não tinha a liberdade de andar batendo coxas pelas ruas. As casadas saíam com os maridos, as outras podiam ir à escola, à missa. Em compensação, de vez em quando havia matinê de danças e bailezinhos bons de namorar de noite. Quando o namoro estava pegado, podiam ir com o futuro noivo ao cinema. Hoje pode a mulher fazer tudo o que pensa, salvo se não tem dinheiro. Anda como quer e com quem quer, de dia e ou de madrugada.

Mulher de classe média ou de alta-roda não trabalhava em casa. Estava sempre servida de cozinheira, copeira, lavadeira. Mulher de operário, sim, realizava as tarefas caseiras.

A mulher, de modo geral, gozava de cobiçados privilégios. Todas as mazelas da vida se verificavam com os machacás: desde a cobrança de contas do quitandeiro aos desaforos de marido alheio por causa das picuinhas das esposas vizinhas.

Mulher nunca tinha nome: solteiras ou casadas, eram conhecidas pelo nome do legitimo esposo. Quando amancebada, pela denominação do amante respectivo. Era até bonito ser rapariga de cabo da polícia, chofer de caminhão ou gigolô.

Recebiam as filhas-de-eva tratamento excepcional e de fina educação por toda parte. Nas estradas lamacentas, se o caminhão atolava, os adões logo estavam convocados para o empurramento. Elas, nunca, que em tempo algum botaram força, só no ato da parição, antigamente. Nos ônibus lotados, fêmea não ficava de pé. Aparecia o tipo fino, elegante, se levantava e oferecia-lhe o lugar por ele ocupado. Mas agora ninguém lhe cede o assento, até as buchudas ficam se rebolando dentro dos coletivos. De primeiro, se o lenço do rabo-de-saia caia na calçada, o homem corria, apanhava-o e devolvia-o, às vezes sujo de catarro. O individuo namorado, noivo, casado, se via à frente buraco na rua, protegia a companheira, segurando-a pelo braço e advertindo-o do perigo. Agora o pessoal empurra a dona para o precipício. Também os gajos abriam o guarda-chuva, ficavam debaixo d'água, mas cobriam a mulher ao lado, com todo o respeito e aptidão. Hoje elas que se danem.

Quantos privilégios. Regalias sem conta. As mulheres deviam lutar por um retorno aos tempos antigos, às suas origens caseiras. E estou achando que as inteligentes cronistas sociais de Teresina, mulheres antes de tudo, iniciaram, veladamente, a marcha para a volta à submissão do sexo frágil ao homem, a ressurreição do machismo. Pois não é que as nossas cronistas escrevem todo dia o nome do pessoal festeiro, citando o sujeito, seguido de SUA fulana, como se esta fosse dele propriedade? Observem os registros. Compareceram na recepção: o Dr. Pancrário e sua Bigorna, o Dr. Creolino e sua Lascívia, o Dr. Matapasto e sua Estrepolia.

Um bom começo. A mulher nas nossas registradoras de notícias elegantes têm dono. E isto é bom, porque nós sempre as possuímos ao longo da vida, no bom sentido.


A. Tito Filho, 13/04/1991, Jornal O Dia, p. 4

O VELHO CLUBE

Senhores da mais alta evidência, pelo dinheiro e pelo prestígio político e intelectual, fundaram a sociedade recreativa Clube dos Diários, no ano do centenário da Independência do Brasil, 1922. Coube a primeira presidência ao comerciante e proprietário Antônio Ferraz. Deu-se o baile inaugural a 31 de dezembro do mesmo ano, na casa residencial do negociante Antônio Campos, batizada de CAMPINA MODESTA. Disseram-me depois que a festa esteve maravilhosa. Presença da fina flor da alta roda, mulheres vestidas de muito luxo e beleza. Anotaram-se na crônica da época nomes prestigiosos de homens e suas famílias, como Matias Olimpio, Miguel Rosa, Valdivino Tito, Jarbas Martins, Mário Baptista, Evandro Rocha, Sotero da Silveira, Simplício Mendes, Antonino Freire, Heli Castelo Branco, Antônio Costa Araújo Filho, Heitor Castelo Branco, Álvaro Freire, Agripino Oliveira, Antônio Chaves, Dídimo Castelo Branco, Joel Oliveira, com destaque especial para o solteirão governador João Luís Ferreira e outros.

Em 1927, houve a festiva inauguração da sede própria, no terreno doado pelo governador Matias Olimpio, a mesma que atravessou os anos até hoje, e que, de vez em quando, sofria alterações para atendimento dos novos sócios que se filiavam ano por ano. A atual sede está aumentada mais ou menos da metade do que foi antigamente.

Tornou-se essa sociedade recreativa o centro social da intensa atividade. Era a instituição querida dos teresinenses. Deslumbrantes as suas festas dançantes. Muitos namoros, noivados e casamentos tiveram inicio nos seus salões. Homenagens a políticos, banquetes, recepções ainda hoje estão na lembrança da cidade. Carnavais formidáveis vivem na recordação permanente de velhos foliões. Ali se realizaram conferencias literárias e posses acadêmicas aclamadíssimas. Eleições de misses. Reuniões de objetivo vário.
Ainda na década de 60 o Clube dos Diários, apesar do nascimento e florescimento de outros grêmios, mantinha-se altivo, como uma relíquia, freqüentado por uma sociedade que já afrouxava os freios morais de homens e mulheres. A juventude entregava-se aos primeiros passos da constatação de costumes nas coletividades humanas.

Nos fins dos anos 60 e principio da década seguinte, a agremiação tão querida entrou em decadência e chegou ao estado que chegou, requentada pelos que apreciam o jogo noturno e madrugadino, por homossexuais dos dois tipos, garotos vadios, pivetes. Ainda algumas personalidades ilustres nela espairecem, chorando intimamente as recordações de um tempo romântico que não volta mais. O ambiente está hoje de sujeira e integral desagregação física, do solo ao teto. Sombra dorida de um passado de riqueza espiritual. Em tudo, os fantasmas dos que bailaram, cantaram e se divertiram na magia de um mundo maravilhoso que a imbecilidade dos homens maus não soube preservar.

Resta ainda como vigilante do encantamento de outrora, o antigo funcionário Marcelino Rocha, o popular Marcelino, com o seu bom comércio de comes e bebes, certamente de coração em lágrimas simbólicas pela morte do bem-querer de todos nós.


A. Tito Filho, 12/07/1991, Jornal O Dia, p. 4

MÃES

Quem inventou um dia dedicado às mães, e a invenção coube a cidadã norte-americana, certamente se animou de boas intenções. Pretendeu que se homenageasse a mulher-bondade, a educadora do lar, embora as mães desde muito tempo se tenham esquecido dos seus deveres. São poucas as que hoje cumprem o papel sublime que a sociedade lhes confiou. De modo geral as mães abandonaram o lar, e assim, quando têm posses, os filhotes caem nos beliscões das babás descarinhosas. Para as pobres, existem creches, onde passam horas, sem contar os orfãozinhos de afeto. Quando mais taludos, garotos e garotas passam ao processo deseducativo das ruas e nestas adquirem todos os vícios e a convivência dos mais perniciosos companheiros. Nos dias atuais a televisão faz o resto.

A mãe, com o desenvolvimento industrial e a fabricação de produtos em massa, pouco a pouco passou a objeto de propaganda. Os negociantes anunciam os mais requintados presentes para aquelas que conceberam o milagre da vida. Ninguém se preocupa com as dádivas maravilhosas do amor, da amizade e do respeito. Haja dinheiro. Existe um sentimento de mágoa, de abatimento, de vergonha nos que não possuem o vil metal ou o reles papelucho inflacionado para comprar o presente pelo dobro na loja enfeitada de colorido estoque. Os ricos facilmente adquirem os mimos caros, as cousas da moda, as novidades do dia que se anunciam aos quatro cantos da cidade de pouquíssimos esgotos. Os pobres suam na entrada e nas prestações a juros de banqueiro. Quem não se ajeita no fiado, paga no meter das buchas. Uns e outros talvez não saibam que por conta dos fregueses corre o elevadíssimo preço da publicidade. Passada a data solene, o preço dos objetos cai pela metade.

Tornou-se o dia das mães um dia de angústia, de aperreio, de aflições, de ânsias para a classe média e o operariado, ambos assalariados e maltrapilhos, pois difícil de encontrar dinheiro, que é escasso e raro e chorado e vasqueiro nos bolsos dos machacás e bolsinhas das mulheres da plebe ignara e vociferante. Obtidos os miseráveis cruzados, a segunda parte da tormenta está em conseguir a harmonia das pelegas com o custo do objeto que o coitado (a) consegue comprar, depois de mudanças desgastantes, espiando, indagando, pechinchando debaixo da barulheira infernal dos alto-falantes e dos pregões de caixeiros esqueléticos à porta das lojas ou camelos de enjoativa palração.

O dia das mães parece instrumento de suplício. E já se aproxima o dia dos namorados, que facilmente encontram oportunos e baratos presentes, as CAMISINHAS, de não muito segura atuação, mas quebram o galho.

Olhei os jornais teresinenses do dia das mães. Páginas inteiras de fotografias das mais ilustres, finas e ricas senhoras do socaite da terra. Uma festa de mulheres bonitas e elegantes. Reconheci algumas delas, dignas de minha admiração.

A mim mesmo fiz a pergunta. Por que também não se homenageiam as mães mortas e as mães vivas pobres? As roubadas pela morte cumpriram a obrigação e deixaram saudade, as pobrezinhas de Cristo são heroínas, criam os filhos sabe Deus como. Mortas e pobres merecem a cara nos jornais. Por que só as ricas? E a minha santa que se foi ainda nova? E minha comadre CEIÇA, que ainda está de pé, depois de realizar o milagre da vida em quinze novos rebentos, vadiando muito com o Bitonho no jirau do casebre?


A. Tito Filho, 12/05/1991, Jornal O Dia – p. 4

JÂNIO

Inexperiente, andei votando nuns nomes que a publicidade endeusava para presidente da República. Votei no Brigadeiro Eduardo Gomes, para quem Prado Kelly escrevia a discurseira de homem puro. Foi derrotado. Puseram Dutra no Catete, general cercado de genros e filhos de criação. Dutra gastou as divisas nas estranjas comprando porcaria de matéria plástica aos gringos. Amedrontado do barulho da banda de música da UDN, o general fez acordo político com Otávio Mangabeira, baiano esperto, e outros tocadores de instrumentos como bombo e bombardão. Em seguida pus meu voto no Getúlio. Um novo Getúlio Vargas, sério, nacionalista, criador da PETROBRÁS que o ditador Geisel, anos depois, sem lei e sem decreto, espatifou nos contratos de riscos. Um país pândego. Pois bem. Formou-se uma onda de impiedade contra um dos raros estadistas deste país e Getúlio, levado a cruel desespero, meteu uma bala no peito numa tristíssima manhã de agosto, no quartinho desconfortável do palácio presidencial, o Catete. Novamente fui convocado ao voto. Três candidatos, nem me lembrou, um deles o Juscelino, em quem votei. Tinha mania de grandeza, num país de cegos, aleijados, famintos, desgraçados. Quando prefeito de Belo Horizonte, fez a Pampulha, cousa de rico, enfeitada de lago artificial, com cassino e outras dissipações. Por perto o povo pedia esmola. Na presidência, chamou os sábios das escrituras e mandou que se projetasse uma nova capital para o Brasil, no cerradão bruto do planalto central. Todos os dinheiros deste país se destinavam ao sorvedouro nacional. Derribou-se a mata raquítica, torta, que nem passarinho queria. Os animais de caça fugiram para as matas distantes. Construiu-se a monstruosidade. Cimento armado. Um dia Vitorino Correia andava atrás de emprego melhor que o de general reformado. Correu a Juscelino, que lhe ofereceu a presidência nacional do IPASE, contando que toda a arrecadação se metesse na buraqueira de Brasília. O general desistiu, era homem sério com os dinheiros alheios. Sucedeu mais uma eleição presidencial. Votei em Jânio, cabra bom, brasileiro. Nele sobrava o principio da autoridade. Governou uns sete meses. Mandou que os políticos trabalhassem no Congresso - e assim se engavetaram os projetos necessários ao governo. Revogou os subsídios oficiais à gasolina, pagamento que o Brasil fazia em beneficio da bolsa dos ricaços, pois pobre mal pedala bicicleta. A malandragem da jogatina de futebol e da corrida de éguas e cavalos só sábado e domingo. Aboliu a perversidade da briga de galo. Proibiu a sem-vergonhice do biquíni. Botou funcionário público no trabalho. Caloteiro passou a pagar imposto. Jânio deixou a presidência com altivez e dignidade. Quis dar um golpe. Não pôde, infelizmente.

Muito anos depois, eleito, voltou à Prefeitura de São Paulo. Ninguém lhe conhece a obra monumental que vem realizando, pois não compra nem paga publicidade. Vou, porém, transcrever, amanhã, a insuspeita opinião de "Jornal do Brasil".

De mim, sou janista de quantos costados eu possua.


A. Tito Filho, 11/09/1991, Jornal O Dia, p. 4

GAIOLAS

Não conheci, ao menos de longe, o vapor construído em Parnaíba, batizado Comandante Fausto Silva, agora na capital piauiense, na distância de cento e trinta e um anos do primeiro GAIOLA, o vapor URUÇUÍ, que se fabricou no Rio de Janeiro.

Esses vaporzinhos antigos eram de excelente viajar. Num deles, em 1942, embarquei em Juazeiro da Bahia, para subir o São Francisco até Pirapora, em minas, e daí alcançar o Rio de Janeiro, por terra. Viagem gostosa. Rapazola, deliciei-me com muita cabloca de beira d'água, nas cidadezinhas da época. Estive na gruta de Bom Jesus da Lapa, espaçosa e clara, na terra baiana. Muita pobreza. Mendigos às pencas, feridentos, doentes, maltrapilhos.

Gostei da cidade de Barra do Rio Grande, margem esquerda da grande corrente fluvial, onde foi aldeia de índios e fez parte do célebre Sertão de Rodelas - que pertenceu à Bahia, passou a Pernambuco, a Minas e voltou ao domínio baiano.

Estive doze dias subindo o rio. Manhãs e tarde monótonas. Noites agradabilíssimas. Dormida ao ar livre, na rede do cheiro da gente. Refeições de bom peixe. O comandante apreciava a boa pinga.

Fiz outra viagem nos GAIOLAS, saindo do Rio de Janeiro em 26-12-1946. Percorremos o São Francisco de Pirapora e a Remanso e entramos no Piauí de caminhão, por São Raimundo Nonato. Alegres companheiros no percurso: Tibério Nunes, Fenelon Silva, Mariano Mendes, Álvaro Ferreira Filho. Atingimos Floriano no dia 18 de janeiro de 1947. Nessa antiga Colônia de são Pedro de Alcântara tomamos passagem noutro GAIOLA, rumo de Teresina. Embarque pelas 11 da manhã e chegada ao ponto final às 7 da manhã de 19, um domingo, quando o eleitorado já buscava os locais competentes para eleger o primeiro governador do Piauí depois das trevas da ditadura de Getúlio Vargas, o médico José da Rocha Furtado, artista do bisturi.

Os naviozinhos que o povo chamava VAPOR desapareceram da paisagem do Rio Parnaíba, faz uns trintas anos. Os do rio São Francisco estão transformados em PALÁCIOS de turismo, com orquestras, AMERICAN BAR, mulheres de aluguel, para milionários em férias, PLEIBÓIS de pais latifundiários, artistas de roquenrol e outras maluquices. Contam que nestes passeios, subindo e descendo o rio, gasta-se muito dinheiro mas goza-se um bocado a vida.

Jorge Amado, num dos seus melhores livros, narra viagem nesses barcos ao tempo do transporte a serviço das populações ribeirinhas. Comovente drama de dezenas de pobres e humildes na segunda classe, amontoados, em severa promiscuidade, e as delícias da primeira classe, no segundo andar do vaporzinho. Uma reportagem forte, vida real, da forma que contou o romancista baiano.

Ainda não sei se o Piauí voltará ao transporte pelo seu Rio Parnaíba, quase sem condições de navegabilidade.


A. Tito Filho, 11/07/1991, Jornal O Dia, p. 4

EDIÇÕES

Pedro José da Silva, o popularíssimo Pedro Silva dos velhos, nasceu em Teresina, 1892. Morreu em 1974, no Rio de Janeiro. Músico, maestro, organizador, harmonizador e regente da Banda de Música do 25º Batalhão de Caçadores da capital piauiense, deu muita vida à praça Rio Branco que antigamente nas retretas do coretinho central. Muito novo, no começo do século, criou, com Jônatas Batista, o Clube Recreio Teresinense, que levou a cena, no respeitável Teatro 4 de Setembro, as peças NATAL DE JESUS e JOVITA. Esses dois piauienses tornaram-se as duas principais figuras da vida teatral de Teatral de Teresina durante anos. Entre 1917 e 1925, essa tradicional casa de espetáculos viveu grandes e ruidosas temporadas com as revistas de Jônatas por Pedro musicadas, como O BICHO, sátira ao popular jogo criado pelo Barão de Drummond, no Rio; FRUTOS E FRUTAS, O CORONEL GALANTE, entre outros. O ativo maestro ainda fundou o PALACE, na praça Rio Branco, animada casa de diversões de muita posteriormente arrendou o Teatro de 4 de Setembro, quando trouxe a Teresina célebres companhias teatrais. Passando a residir no Rio, trabalhou em estações de rádio, época em que difundiu demais o folclore piauiense. Dedicou grande parte da velhice a descrever os tipos, as cenas, os costumes, a religiosidade, as festas de São João, o ciclo do natal, as danças típicas e os gêneros musicais do Piauí - e confiou o trabalho à Academia Piauiense de Letras e esta o entregou a Secretaria de Cultura. Em 1987, localizou-se a obra de Pedro Silva. Confiei-a à Fundação Cultura Monsenhor Chaves, na pessoa de sua ilustre presidenta, o livro foi editado com o titulo de O PIAUI NO FOLCLORE, trabalho assaz oportuno e necessário.

O conto foi pouco cultivado na literatura piauiense do passado. Parece que o primeiro em salientar-se nesse gênero se chamou Francisco Gil Castelo Branco. Seguiram-se outros contistas como João da Cruz Monteiro, João Alfredo de Freitas, João Licinio de Miranda Barbosa, Arquelau Mendes, Julio Emílio de Paiva Rosa, surgiram depois Amélia Bevilaqua e Clodoaldo Freitas. Perto do nosso tempo se encontra Esmaragdo de Freitas, Álvaro Ferreira, Fontes Ibiapina, para que se registrem somente os mortos, no meio dos quais cumpre colocar João Pinheiro, que se serviu de acontecimentos reais e retratou caracteres físicos sertanejos. Agora surgiu Alvina Gameiro, com CONTOS DO SERTÃO DO PIAUÍ, narrativas de episódios e acontecimentos. Talentosa e de superior engenho, a escritora localiza os seus panoramas no chão desta terra piauiense.

Raul Furtado Bacellar publicou PALAVRAS A AMIGOS, que reúne escritos e concepções de quarenta ou mais anos passados, num retrato social e histórico de Parnaíba no Piauí. Estilo seguro, firme, visão ampla de pessoas e acontecimentos, fiel à memória dos fatos e das personagens que os viveram. O capitulo VIAGEM A MANGABEIRA possui aspectos descritivos e narrativos de mestre. Uma excursão deliciosa e contada com superior inteligência.


A. Tito Filho, 10/07/1991, Jornal O Dia – p. 4 

ESCOLAS

Quando me entendi em Teresina as mães viviam em casa, amamentando os pequerruchos, ou no preparo de mamadeiras ou dando fraldas, bem assim educando os meninos até que, aos sete anos, ingressavam na escola primária, ou no grupo escolar. A garotada começava o estudo de manhãzinha e nele permanecia até as onze horas, no bom recitativo da tabuada e na soletração de palavras. Os estabelecimentos pertenciam ao governo. Exigência apenas da fardinha caprichada, sapato ou botina e meia. Certamente que por baixo havia a calcinha das meninas, que os machos andavam descuecados. Havia escolas particulares, de professores e professoras, de irrisório pagamento.

Ainda no começo da década de 30, segundo me contam, existiam na capital piauiense dois educandários oficiais de ensino secundário, o Liceu e a Escola Normal. Ensino integralmente gratuito, a rapaziada só gastava a farda e o calçado ganho dos pais. Um prestígio de dar inveja a situação de liceísta e normalista. A merenda, que hoje pernosticamente se chama lanche, se fazia numa espécie de quiosque das imediações, geralmente constituída de garapa de cana e um pãozinho redondo, de nome caramujo.

Dois estabelecimentos particulares havia, cada qual de muito conceito, ambos com internato e externato: o Colégio Diocesano de homens e o Colégio das Irmãs de mulheres, que ainda desafiam os tempos. Os internos tinham saída aos domingos - e a gente via pelas ruas fardados donzelos e donzelas, pálidos, como quem viu alma do outro mundo, depois de seis dias prisioneiros, quando internos.

Professores famosos, os do ensino primário e os do secundário. Capazes, sérios, respeitados. Mestres que fizeram história e educação.

Quase os estudantes não gastavam com livros, se não os que queriam nas raras livrarias da cidade. As aulas eram suficientes para o aprendizado, o que não acontece hoje, com aulas mastigadas, incompreensíveis pelos pobres e abandonados pupilos. Tanto faz que entendam ou não o ensinamento, nada se repete.

Hoje as mães vivem nas ruas. Instituíram-se creches, onde os meninos aprendem a engatinhar. Em seguida, escola maternal. Depois, jardim, alfabetização - e a seguir o primeiro e o segundo graus, tudo em estabelecimento de negócios particulares. As escolas do governo, ditas hoje do primeiro e segundo grau, oferecem péssimas condições de ensino, razão pela qual os pais se sacrificam nas escolas particulares, de elevado preço e exigências absurdas de vinte cadernos, coleções de madeira, de cera, hidrocor, figurinhas de jogador de futebol, resmas de chamex, cinco tesouras, um binóculo, vinte rolos de papel higiênico, trinta pacotes de absorventes para as mulheres, vinte folhas de estêncil, uma máquina de escrever, um computador dos Estados Unidos e contribuições para as festocas. Os jovens, machos e fêmeas, carregam tanto peso que ficam tortos de um dos lados - fora lencinho de papel, toalha, escova de dente, pasta, sabonete, desodorante, roupa de banho e outros ingredientes que me fogem da memória. Tudo moderno e amplamente atual. Tudo Brasil.


A. Tito Filho, 06/04/1991, Jornal O Dia, p. 4

quinta-feira, 26 de abril de 2012

VELHA CANÇÃO

No Rio de Janeiro, como estudante, morei em diversas pensões, nos bairros de Ipanema, Botafogo e Catete, de mensalidade módica. O desjejum da manhã, pobre, reunia uma xícara, média de café e leite, um pão e manteiga rala. Almoço de arroz, feijão, macarrão e bife de caldo ou assado. Nos domingos, galinha guisada, porções mais abastadas porque não havia jantar, e este, nos outros dias da semana, era constituído de arroz e mais duas qualidades. Havia extraordinário, se o hospede quisesse - ou repetição de prato servido ou ovos estrelados. Pagava-se por fora da mensalidade. Assim, engolindo essa bóia monótona, se passaram cinco anos. A gente dormia tarde e o jeito estava em agüentar a barriga roncando durante as noites e as madrugadas. Não se forneciam lanches nas hospedarias de estudantes. Os que podiam lanchavam nos bares e confeitarias.

Depois de retornar a Teresina voltei muitas ocasiões ao Rio de Janeiro, sempre por via aérea. A primeira viagem de recreio se deu em 1948, nos pequenos aviões da Navegação Aérea Brasileira ou da Cruzeiro do Sul. Embarcava-se no velho aeroporto. Saía-se de Teresina às 6 da manhã e chegava-se ao destino pelas 7,8 ou 9 horas da noite. A rota compreendia Floriano, a Lapa na Bahia, Salvador, Ilhéus, Belo Horizonte e Vitória. quando se fez o aeroporto novo, a viagem passou a ser feita nos aviões tipo CONVAIR, modernos para a época. De vez em quando caíam. Perigosos. Condenados, retiraram-se de uso. Viajei num deles, em 1962, com os velhos amigos James Azevedo e Higino Santana. ficamos no Rio. O avião subiu para São Paulo e no percurso espatifou-se. Morreram os passageiros, sem exceção. Inaugurou-se a era do ELECTRA. Turbo-hélice. Aeronaves seguras. Cômodas. Uns 600 quilômetros por hora. Ainda hoje são utilizados entre Brasília e Rio. Chegaria a vez dos SKYMASTERS, grandões, feios, desconfortáveis, apelidados aviões da fome porque serviam apenas um cafezinho em copitos de papel. Velhos e antiquados, demoraram pouco nas linhas nacionais. Por fim, os tipos CARAVELLE e BOING, os jactos modernos.

Nessas viagens ao Rio hospedava-me em hotéis, bons hotéis, como o Rex, o Flórida, o Itajubá, o OK. Parece que não se usam os milhares. A classificação chega a cinco, cinco estrelas, o mais requintado. Dizem que os cearenses chegam a 10 estrelas.

Uma feita hospedei-me no Hotel dos Estrangeiros, e nele, ao pé da escada que conduzia ao andar superior, traiçoeiramente, Manso de Paiva enterrou faca nas costas do senador gaúcho Pinheiro Machado, matando-o. O político morava na hospedaria. O fato aconteceu em 1915. O famoso líder político quis ser o sucessor de Hermes da Fonseca na presidência da República, mas os BARÕES latifundiários paulistas lhe inviabilizaram a candidatura por meio dom acordo São Paulo e Minas Gerais, o café-com-leite. Mas as legiões de correligionários do chefe gaúcho não perdiam as esperanças, até que em 1915, setembro, se deu o episodio perverso do assassinato. No carnaval, de 1916, muito se cantou a toada de compositor pernambucano, se não me engano: "O meu boi morrei / Que será de mim / Manda buscar outro ô maninha / Lá no Piauí".

Morrera Pinheiro Machado, filho de uma das terras do boi, e o jeito era mandar buscar outro no Piauí, onde o boi valia grande riqueza.

A rima MIM e PIAUÍ se aceita como licença-poética, pois o latim MIHI daria MI, forma tipica no português, que passou a MIM em virtude de nasalização, fato histórico comum, como se vê em NEC, igual a NEM.

Se a toada pernambucana não aludiu a Pinheiro Machado, é bem provável.


A. Tito Filho, 05/02/1991, Jornal O Dia, p. 4

quarta-feira, 25 de abril de 2012

CARNAVAL

A princípio houve o ENTRUDO, que os portugueses trouxeram para o Brasil, no século XVIII. Mário Sette, o cronista do Recife antigo, informa que na capital pernambucana se brincou muito o ENTRUDO, tipo de carnaval com banho dos foliões dentro de gamelas e barris. Eneida, que tão bem escreveu a história do carnaval carioca, considera o ENTRUDO porco e brutal, assustador dos primeiros viajantes estrangeiros chegados ao Brasil.

O carnaval de Teresina até 1859, conforme ao depoimento do padre Joaquim Chaves, era modesto e consistia quase exclusivamente no ENTRUDO das bisnagas, que esguichavam água suja, vinagre e outros líquidos, derramados em roupas e cabeças. Sujo e grosseiro.

Em 1859 deu-se o primeiro carnaval de Teresina. Brigou-se muito. Bailes no Teatro Santa Teresa, hoje Secretaria da Cultura. Cavalheiros mascarados a cavalo e a pé percorreram a cidade. Rapazes já se fantasiavam vestidos de mulher.

A CARNAVAL têm sido atribuídos muitos étimos diferentes.

O velho Morais dá-lhe origem italiana carnavale ou canevale.

Figueiredo acolhe opinião de Korting: a fonte de carnaval é carrus e navalis, que dariam os elementos car e naval para a formação da palavra. O autor a que se refere o dicionarista, o citado alemão Korting, pretendeu referir-se talvez aos carros alegóricos característicos de festejos carnavalescos. Para Xavier Fernandes o étimo referido não tem fundamento histórico.

Diez sugeriu que carnaval derivou de duas palavras latinas: caro, carnis (carne) e vale (adeus), significando adeus, ó carne.

Deve observar-se que a raiz do primeiro elemento carn não pode ser um vocativo. Esta a razão pela qual os estudiosos levam à conta de fantasia a sugestão do ilustrado filólogo.

Xavier Fernandes anota o estudo de Bouillet: "Carnaval formou-se do latim caro e do francês avale, de avaler, engolir, comer. Bouilet não se importou com a formação híbrida, que sugeriu, e - pior do que isto - esqueceu-se de que o vocábulo já existia no italiano antes de existir no francês".

Nascentes oferece o étimo italiano carnevale, mas observa: "É duvidosa a origem deste vocábulo, primitivamente designativo da terça-feira gorda, tempo a partir do qual a Igreja suprime (latim levare) o uso da carne".

Petrochi apontou como étimo o baixo-latim, interpretado por Stappers como carnis levamen, prazer da carne, antes da tristeza e continência da quaresma.

Parece que a etimologia mais aceitável de carnaval é o italiano carnevale ou carnovale, tirado do baixo-latim carnem levare, com a significação literal de abstenção de carne.

Carnaval já expressou o tempo em que se comiam viandas e guisados de carne. Vieira escreveu: "Tumultuou o povo no deserto contra Moisés, e foi o tumulto de carnaval" - isto é, causou o tumulto as recordações do tempo em que comiam carne no Egito.

São diversas as origens atribuídas ao carnaval. Originário da Antiguidade ou da Idade Média, a verdade é que ele aparece de formas diferentes em épocas e países distintos: entre os gregos e romanos, com préstimos de pessoas mascaradas e mulheres nuas; na Espanha, na Alemanha, na Rússia, na Itália, na França - por toda a Europa, embora no Velho Mundo dos nossos dias esteja quase desaparecido.

Ao Brasil chegou o carnaval no século XVII, trazido pelos portugueses, inicialmente sob a forma de entrudo.


A. Tito Filho, 08/02/1991, Jornal O Dia, p. 4

terça-feira, 24 de abril de 2012

REFORMAS

A mania nacional tem sido reformar o ensino. Cada ministro, uma reforma. Sem recuar muito no tempo, na década de 30 o brasileiro tinha um ginásio de cinco anos. Terminando este, submetia-se a exames para as faculdades, caso quisesse. O ministro Francisco Campos bolou uma reforma, séria, de que abaixo se tratará.

Estando ministro, Gustavo Capanema implantou nova reforma: quatro anos de ginásio, três anos de científico ou clássico. Concluídos, o jovem buscava, se lhe apetecesse, os exames de ingresso nas escolas superiores. A reforma Capanema, ela mesma, foi reformada com acréscimo e supressão de disciplinas. Nela meteu-se o espanhol, dela tirou-se o espanhol. Depois, chegaria a vez de abolir o francês. Introduziram-se a organização social e política do Brasil e educação moral e cívica. E assim por diante, até que a estudantada desembocou na reforma Jarbas Passarinho, com a ensinança do primeiro e do segundo grau, ora em vigor. Ensino profissionalizante mas ninguém vai nessa profissionalização, porque todos querem o anel de doutor, mesmo sem mercado de trabalho.

A melhor reforma do país foi, de fato, a do ministro Francisco Campos. Cinco anos de ginásio, para a base humanística. Em seguida, o futuro profissional definia-se por um dos três ramos de preparatórios: o pré-juridico, o pré-médico ou pré-técnico.

O pré-jurídico, por exemplo, era constituído de disciplinas necessárias ao bacharel em direito: estudavam-se biologia, sociologia, economia política, higiene, história da filosofia, literatura, latim - e assim o estudante ingressava na faculdade com excelente soma de conhecimentos. Antes do ingresso, havia o vestibular - não o vestibular de testizinhos, mas de provas escritas em que realmente se podia mostrar competência.

Nos tempos de hoje se diz que a guerra dos vestibular parece mais terrível do que a guerra entre árabes e judeus, pois esta é uma guerra de violentos choques e do vestibular se torna guerra psicológica, donde os vencidos promanam frustrados, como se estivessem marginalizados do processo social brasileiro.

Há candidatos aprovados que não acreditam na vitória, e contam que se inscreveram para experimentar, jogar o barro na parede - uns chegam a confessar que nada estudaram. Um canja o sistemazinho de testes e suas pândegas opções. As editoras brasileiras já fazem enciclopédias de testes para vestibular. Hoje se espalham pelo Brasil doutores em preparativos de testes. E não está longe o tempo em que os universitários terão cursos de doutoramento em arte de fabricar testes.

Os moços deixaram os livros, não lêem pois consideram desnecessário o estudo e a leitura. O doutor de amanhã sabe que tudo se resume em decifrar testes. Melhor a revista de quadrinhos e o livro de bolso erótico e enaltecedor da violência. Machado de Assis passa a ser sujeito tolo que andou falando da vida alheia.

O teste naturalmente suplantou a cultura, em todas as suas manifestações.


A. Tito Filho, 08/06/1991, Jornal O Dia, p. 4

segunda-feira, 23 de abril de 2012

GRANDE TERESINA

Metropolitano significa pertencente ou relativo a metrópole. Que quer dizer METRÓPOLE? Palavra vinda do grego originariamente CIDADE MÃE. Diz-se da capital de país, de província, cidade principal, e por extensão, grande cidade ou cidade importante.

De certos anos aos dias de hoje, esses grandes centros populacionais passaram a ser considerados em dois aspectos: na sua área normal, composta do centro e dos seus bairros próximos e distantes, e na chamada ARÉA METROPOLITANA, que compreende as comunidades que têm íntima e constante comunicação com as cidades enormes, e em razão disto estas passam a denominar-se GRANDE seguida do nome de batismo de cada qual. Bueno Aires tem três milhões de habitantes, mas GRANDE BUENOS AIRES chega a mais de dez milhões. Nova Iorque possui uns nove milhões de almas. A GRANDE NOVA IORQUE atinge quase vinte milhões.

O Brasil criou também regiões metropolitanas, parece que em 1972, com o objetivo de que se conseguisse o desenvolvimento econômico e social de áreas homogêneas, justamente nos grandes centros urbanos integrados por um ou vários municípios de problemas idênticos. Parece que pouco se conseguiu até agora. A primeira região metropolitana foi a de são Paulo, abrangendo trinta e sete municípios da GRANDE SÃO PAULO. Depois se criaram outras, como a Grande Belém, a Grande Fortaleza (Aquiraz, Caucaia, Maranguape, Pacatuba), Grande Recife (Jaboatão, Olinda e outros), Grande Salvador, Grande Belo Horizonte, Grande Rio de Janeiro (Duque de Caxias, Maricá, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Petrópolis e outros).

Nos programas de rádio a gente ouve constantemente que o sujeito recebeu pancadas na praça Pedro II da GRANDE TERESINA. Mas a qualificação não se mostra convincente. Teresina pertence à GRANDE TERESINA em lei, mas não representa a GRANDE TERESINA.

Teresina se distribui em bairros, como a Vermelha, a Piçarra, o Saci, o Porenquanto, o Poti Velho, o Jóquei Clube, o São Cristóvão e quantos mais. Tudo isto constitui Teresina. A GRANDE TERESINA compreende Timon, Demerval Lobão, Monsenhor Gil, Altos, União, José de Freitas, cidadezinhas que correspondem a verdadeiros subúrbios da cidade grande. Se a humanidade chegar ao fim do terceiro milênio, talvez todas essas comunidades interioranas das proximidades do município-capital sejam uma cidade só.

Quando o sujeito assalta o próximo na praça Rio Branco, o assalto se verificou em Teresina. Se o individuo mata em Timon, o que é comum, então o crime se deu em Timon e ao mesmo tempo na GRANDE TERESINA.

A cooperação hoje dou de graça a meus distintos colegas locutores e fazedores de programa de rádio. Cooperação de bom sentido, limpa e correta.

Nada custa que a comunidade se eduque. Cabe observar a inexistência da PRAÇA DA BANDEIRA, situado na PRAÇA MARECHAL DEODORO. É tão fácil compreender.


A. Tito Filho, 25/04/1991, Jornal O Dia, p. 4

domingo, 22 de abril de 2012

ESCOLAS

Quando me entendi em Teresina as mães viviam em casa, amamentando os pequerruchos, ou no preparo de mamadeiras ou dando fraldas, bem assim educando os meninos até que, aos sete anos, ingressavam na escola primária, ou no grupo escolar. A garotada começava o estudo de manhãzinha e nele permanecia até as onze horas, no bom recitativo da tabuada e na soletração de palavras. Os estabelecimentos pertenciam ao governo. Exigência apenas da fardinha caprichada, sapato ou botina e meia. Certamente que por baixo havia a calcinha das meninas, que os machos andavam descuecados. Havia escolas particulares, de professores e professoras, de irrisório pagamento.

Ainda no começo da década de 30, segundo me contam, existiam na capital piauiense dois educandários oficiais de ensino secundário, o Liceu e a Escola Normal. Ensino integralmente gratuito, a rapaziada só gastava a farda e o calçado ganho dos pais. Um prestígio de dar inveja a situação de liceísta e normalista. A merenda, que hoje pernosticamente se chama lanche, se fazia numa espécie de quiosque das imediações, geralmente constituída de garapa de cana e um pãozinho redondo, de nome caramujo.

Dois estabelecimentos particulares havia, cada qual de muito conceito, ambos com internato e externato: o Colégio Diocesano de homens e o Colégio das Irmãs de mulheres, que ainda desafiam os tempos. Os internos tinham saída aos domingos - e a gente via pelas ruas fardados donzelos e donzelas, pálidos, como quem viu alma do outro mundo, depois de seis dias prisioneiros.

Professores famosos, os do ensino primário e os do secundário. Capazes, sérios, respeitados. Mestres que fizeram história e educação.

Quase os estudantes não gastavam com livros, se não os que queriam nas raras livrarias da cidade. As aulas eram suficientes para o aprendizado, o que não acontece hoje, com aulas mastigadas, incompreensíveis pelos pobres e abandonados pupilos. Tanto faz que entendam ou não o ensinamento, nada se repete.

Hoje as mães vivem nas ruas. Instituíram-se creches, onde os meninos aprendem a engatinhar. Em seguida, escola maternal. Depois, jardim, alfabetização - e a seguir o primeiro e o segundo graus, tudo em estabelecimento de negócios particulares. As escolas do governo, ditas hoje do primeiro e segundo grau, oferecem péssimas condições de ensino, razão pela qual os pais se sacrificam nas escolas particulares, de elevado preço e exigências absurdas de vinte cadernos, coleções de madeira, de cera, hidrocor, figurinhas de jogador de futebol, resmas de chamex, cinco tesouras, um binóculo, vinte rolos de papel higiênico, trinta pacotes de absorventes para as mulheres, vinte folhas de estêncil, uma máquina de escrever, um computador dos Estados Unidos e contribuições para as festocas. Os jovens, machos e fêmeas, carregam tanto peso que ficam tortos de um dos lados - fora lencinho de papel, toalha, escova de dente, pasta, sabonete, desodorante, roupa de banho e outros ingredientes que me fogem da memória. Tudo moderno e amplamente atual.


A. Tito Filho, 09/07/1991, Jornal O Dia, p. 4