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quarta-feira, 2 de maio de 2012

AFETIVA, TRANQUILA E PITORESCA

Muitos dizem que Teresina tem sofrido mudanças notáveis, em todos os aspectos. A cidade cresceu. Nascida com a igreja da Amparo - edificada entre dois rios - o Parnaíba e o Poti, a cidade atravessou o Poti, onde surgiram novos bairros, no rumo de outra cidade, Altos, a uns 40 quilômetros de distância. Em cento e vinte e um anos de existência, naturalmente que surgiram bairros por todos os cantos e recantos, praças, as ruas ficaram mais compridas para os duzentos e cinqüenta mil viventes. Cresceu muito, mas espiritualmente continua a mesma Teresina de amor, alegre nos vestidos de chita das suas caboclas proletárias e de classe média, acolhedora, apadrinhada de santas e santos bons. A mesma Teresina de ontem. E ontem como hoje: Tranqüila, Afetiva e Pitoresca. As cidades nascem com a sua alma, assim como o sal da sua vida. Crescem, mas conservam o espírito de quando nasceram. O Rio de Janeiro alargou-se, verticalizou-se com os arranha-céus. Desapareceram os cafés boêmios, os bondes taiobas - mas o carioca nunca perdeu o espírito, tão encantador - o espírito de fabricar o melhor humorismo desta nação.

Teresina lembra a Maria Preá. Quem não conheceu, anos atrás, alguns anos atrás, aí pela década de 40, a Maria Preá? Mulata rechonchuda, ampla de carnes, dentes alvos, cabelo bem negro, simpatia de todos, Maria Preá, bem sacudida, passeava as ruas, olhares provocantes como as carnes. Era uma tentação, uma provocação, uma danação. De Nápoles se diz: Ver Nápoles e depois morrer. De Maria Preá se diria: passar uma noite no aconchego do seu calor de vida, já era a própria vida. Não se morria, vivia-se. Popularíssima a divina Preá. Chamariz de desembargadores, também de operários e estudantes sem dinheiro.

Um dia Maria Preá foi-se embora. Cada dia mais esbelta, mais desejada, eram, porém, poucos os dinheiros para o futuro. E assim foi que arrumou os vestidos berrantes no baú de couro, pegou trem para são Luís, meteu-se na segunda classe do navio da Ita - e deu às praias do Rio de Janeiro.

No Rio, Maria Preá era uma festa. Cada dia mais enfeitada, mais cobiçada. Usava chapéu de penacho. Carnes gordas, apetitosas, jóias em todos os dedos. Pó de arroz, ruge, batom - tudo a enfeitava.
Alguns anos de rio deram boa situação financeira a Maria Preá. Sofisticou-se no trajar, no andar, no falar. O coração, porém, era o coração de Teresina, que não desconhecia os quebrados, o operário de salário pequeno e o estudante de mesada paterna raquítica. Preá tinha nascido para o amor da humanidade. Por mais que se enfeitasse, que se sofisticasse, que enriquecesse, que se cobrisse de miçangas e de chapéus espalhafatosos, por mais que forçasse requebros, que se estrangeirasse, Maria Preá não escondia o ar brejeiro, o olhar que todos admiravam em Teresina, aquele jeitinho faceiro de gente da cidade pacata.

Um dia lá vem ela descendo a Avenida Rio Branco da antiga capital do Brasil. E subindo a Avenida, caminhava, despreocupado, um teresinense já nos trinta de idade. A mulata andava elegante, de modo de rainha. Mas aquelas ancas, aquele olhar... O teresinense que a conheceu em nesta Teresina, e dela mereceu afagos e amores, parou, embevecido, olhou-a e adiantou-se:

- Tu por aqui, Maria Preá?

E ela, procurando esconder a origem teresinense, forçando a transformação do olhar e da voz:

- Yo tengo una vaga recordación de usted. No me recuerdo se fué de los cabares de Buenos Aires, o mismo aqui del Rio de Janeiro...

E bem puxava o "j" à maneira espanhola: RANEIRO.

O teresinense desconfiou e não se conteve:

- Tu é besta, Maria Preá, eu te conheço...

Assim Teresina, de ontem e de hoje, nunca mudou, tranqüila, afetiva e pitoresca...


A. Tito Filho, 09/08/1991, Jornal O Dia, p. 4

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