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terça-feira, 15 de maio de 2012

TEMPOS DE MEMÓRIA (1)

Quando eu menino, cheguei a Teresina, em 1932, ainda de calças curtas, a cidadezinha gozava de tranqüilidade nunca esquecida. Nada a perturbava. Tinha ruas calçadas, algumas, ou empedradas, e trilho para bonde, mas sem bonde.

Dois cinemas – um tipo poeira, o Roial, de bancos compridos, sem encosto – especialista em bangue-bangue, mas naquele tempo a gente não dizia bangue-bangue – era cinema de artista e de bandido – cinema da molecada do meu tope; o outro, o Olímpia, estava destinado à alta-roda, ao soçaite de hoje. Ambos de filmes mudos – e lá me ia esquecendo – mudos mas gesticulados, como se os gestos fossem a linguagem sonora - e as vezes é, ou pelo menos a transmite, até mais expressivamente. Cinema falado, musicado e sincronizado só em 1933.

E dois cabarés famosos no campo da vida airada: o "Cai Nágua", de madeira, perto do rio, mulherio de segunda categoria, quase bofe, e o da rosa Branca, de pegas vistosas, freqüentado por gente alta, como magistrados, comerciantes abastados, filhinhos-de-papai.

Ainda em 1937, de longe eu olhava o "Cai Nágua", que já não era um mistério para  aminha buliçosa pouca idade, mas era permanente convocação.

A elegância da cidade, de noite, estava na praça Rio Branco - andança na praça, rapazes num sentido, moças noutro sentido. Namoro de olhos, olhares que falavam e diziam tudo.

Tomava-se, e muito, refresco de pega-pinto, diziam que era bom para os rins. Muita garapa de cana, também.

Boa de ver e de morar a Teresina de rodas na calçada, de noite, até que a usina elétrica apitasse ou que a Polícia Militar corneteasse: nove horas. Hora de dormir. Casados e solteiros. Mulher casada e mulher donzela. Exceto nos dias de baile e forró.

Forró das pipiras desejadas e das curicas também. Pipiras e curicas são instituição nossa - e como se incorporaram à paisagem teresinense. Pipiras e curicas - uma delícia. Sambavam noite toda, no forró quente, namoravam pelas esquinas escuras - e a gente não sabia se eram. Hoje se sabe.

De 1938 em diante, vi, como os olhos que a terra há de comer, bolinação em cinema. Pares agarradinhos. Mãos em permanente atividade. Gente alta. Foi um morenão bonito, de cabelos compridos, que me iniciou nas práticas amorosas em salão de cinema.

Veado - dois ou três. Recebiam outros qualificativos. De profissão quase sempre cozinheiros.

Deixei assim Teresina em 1939. A roda na calçada, o carnaval sem porre e lança-perfume, o mercadão repleto de vendeiros e vendeiras, namoro de olhos e de bolinação, avião que baixava nágua, o hidroavião, quermesses em patamar de igreja, jornal de apelidos e descomposturas, quintas e pomares por toda parte, enterro de gente pobre sem banda de música e de gente rica com a respectiva, tocando um troço que espantava e fazia que a gente tivesse mais medo do enterro do que da morte - uma cidade tranqüila, afetiva e pitoresca, em que no meio-dia até uma da tarde quem quisesse fazia pipi no meio da rua, idem idem depois das nove da noite; de velórios de defuntos com mulheres desfiando terços e homens bebendo cachaça ou tiquira, para agüentar o amiudar do galo e a hora da partida do saudoso - mas uma cidade que encontrei na volta, uns dez anos depois, em busca de transformações - transformações em tudo - embora sempre afetiva, tranqüila e pitoresca.

Escritores têm-na definido e revelado; poetas têm-na cantado e exaltado. E são tantos.

De mim, quero-lhe um bem permanente e não a troco por riqueza alguma, por paisagem outra, que seja melhor do que a paisagem teresinense.

Conhecendo-a como a conheço, nas suas virtudes e desvirtudes, e por considerá-la tão original nas suas virtudes e desvirtudes - em razão disto desejo que todos a conheçam, que venham vê-la no seu afeto permanente na sua tranqüilidade espiritual, no pitoresco das suas cousas e da sua gente.

1973 - tantos anos depois dos brincos infantis - eu ainda a sinto e a estimo como a mais afetiva, a mais tranqüila, a mais pitoresca de todas as cidades do mundo.

E tenho razão. Quem aqui chega para o exercício de deveres, ou para serviços de emprego fixado, não quer mais deixá-la. Só se retira a gancho, depois de esgotar os recursos das amizades protetoras, dos padrinhos, dos pistolões. Aqui não há estrangeiros. Há teresinenses. Poucos meses de assento - e o sujeito está dono da cidade. E merecendo homenagem. E casando por aqui mesmo. E fabricando menino na Chapada do Corisco. E menino nascendo na Maternidade São Vicente.

Uma jóia - Teresina. Vem vê-la - brasileiro - e a aclamarás comigo.


A. Tito Filho, 07/08/1991, Jornal O Dia – p. 4

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