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quarta-feira, 9 de maio de 2012

VIÚVA POBRE TAMBÉM É GENTE

Sofrimento de viúva pobre é grande. Marido em casa serve, quando nada faça, ao menos para roncar. Presença de homem tem valor na choupana e no palácio. Dá importância. Se a mulher perde o companheiro, inicia uma existência de atribuições. Ninguém lhe concede prestígio e atenção, excetuada a rica, ou a esbelta, jovem ainda, e esta, por outro lado, padece os cochichos maledicentes e torna-se vítima de grosseiros preconceitos.

De qualquer forma as viúvas desfiam rosário de muitas angústias, sobretudo as pobres, às quais o defunto só tenha legado talvez uma porção de dívidas na quitanda.

Certa vez prestei às viúvas pobres do Piauí grande serviço. Defendi-as com unhas e dentes pelos jornais e consegui que a exigência indevida da lei fosse revogada.

O caso se passou assim.

O governo, num gesto humano, beneficiou as mulheres que haviam perdido ou que viessem a perder os maridos, caso estes, obviamente, exercessem empregos públicos. Antes, a lei de organização judiciária distribuíra pensão às viúvas dos magistrados.

Mas a que concedeu pensão às viúvas dos barnabés trouxe malsinado parágrafo - aquele que reclamava da mulher do supradito barnabé, em estado de viuvez, para que obtivesse o benefício, prova de honestidade. E neste ponto o fato espantava: para que esse testemunho de vida honesta? A quem competia a assinatura do atestado? Ao delegado de polícia. E a autoridade policial teria a evidência da honestidade da viúva, para atestar-lhe tal posição, ou lhe negaria o atestado, como reconhecimento da sua desonestidade? Pareceu-me que esse atestado era ou deveria ser sempre gracioso, salvo se o xerife já houvesse saboreado a viúva e atestasse a desonestidade de conhecimento próprio e assim a referida autoridade colocaria mal.

Demais de tudo, para ajudar a viuvez nos seus encargos do lar e do sustento dos filhos, que tem o Estado com a honestidade das mulheres? Sendo desonesta a viúva, faleceu-lhe a responsabilidade da família?

A viúva tem plena maturidade perante a lei, e a lei não poderia obrigá-la. O marido jaz enterrado e só a ele competiria medidas contra a cara-metade prevaricadora. Que tem o Estado com os prováveis ou certos amores das viúvas? Serão ilícitos esses amores? Nunca dos nuncas, desde que praticados de livre e espontânea vontade por parte dos parceiros de cama e rede, areia de praia ou grama de praça.

A lei protege a menor de 14 anos e considera estupro as relações sexuais com ela mantidas. A lei protege a mulher virgem, de cabaço íntegro, até certa idade, desde que recatada e vítima de sedução. A lei impõe penalidade aos que conseguem amor carnal mediante fraude, ameaça ou violência - e o crime existirá desde que a fraude, a ameaça ou a violência se pratique até contra meretrizes. A lei pune a raparigagem, o lenocínio, a exploração de lupanar. Mas lei alguma proíbe ou considera crime relações de quem pode mantê-las, sem ofensas ao poder público.

Que tem o Estado a ver com a liberdade sexual das viúvas? O Estado não deve submeter-se a preconceitos, porque o preconceito nasce da ignorância ou do interesse escuso, e o Estado pode e não deve guiar-se pela ignorância ou escuso interesse. Integralmente liberta da fidelidade matrimonio com a morte do marido, que tem o Estado com a honestidade ou desonestidade da viúva?

Saliente-se a humilhação imposta às viúvas obrigadas ao petitório de atestados a autoridades policiais, que não têm como testemunhar senão de modo falso, uma vez que não lhes compete o conhecimento dos íntimos episódios em que se envolvem as pessoas, muitas das quais desconhecidas. Por essa forma, os testemunhos dessa honestidade ou desonestidade das viúvas jamais poderiam refletir a verdade. Só em casos excepcionais.

Interessante: para a viúva dos magistrados do Piauí a lei não exigiu atestado algum. Exigiu somente que a beneficiária fosse viúva do falecido. Por que a distinção? Viúva de magistrado tem, perante o Estado, a presunção de honestidade? A dos outros servidores cairia em dúvida?

Viúva nunca poderia praticar desonestidade sexual, salvo se contra a própria consciência, enganado o amante, se fosse o caso.

Com estes argumentos consegui revogar a exigência de honestidade para as viúvas dos servidores públicos do Piauí. Viúva de barnabé também é gente - gritei. E o parágrafo foi postado fora.


A. Tito Filho, 30/05/1991, Jornal O Dia, p. 4

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