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sábado, 19 de maio de 2012

O BONDE

Quando vim de Barras para Teresina, em 1932, já não existia bonde na cidade. Ainda encontrei os trilhos. Conheci esse veículo, do tipo elétrico, em Fortaleza, ano de 1939. Mais comprido do que um ônibus, era do tamanho e da largura de um trem. Quase diariamente eu subia num deles. A gente pisava no estribo, uma tábua do comprimento do carro, de um lado só, e alcançava os bancos de madeira para cinco pessoas. Pelo estribo o chamado condutor cobrava as passagens, dependurado nos balaústres entre os assentos e pulando nos estribos para receber os níqueis dos passageiros.

Encontrei novamente esse transporte civilizado no Rio de Janeiro, começo dos anos quarenta, sempre o servidor dos ricos, a providência dos pobres, a animação da cidade, como escreveu Bilac. Morador de Ipanema, eu viajava nos bondes de preços mais do que baixos, duzentos réis por longos percursos. Defronte da gente, em todos os carros, se lia o cartaz de propaganda de popular remédio da época, em versos: "Veja, ilustre passageiro / O belo tipo faceiro / Que o senhor tem ao seu lado / e no entanto acredita / Quase morreu de bronquite / Salvou-o o Rum Creosotado". Desapareceu o santo medicamento, eu nunca, porém, esqueci os versos pendurados nos bondes cariocas.

Seis horas da tarde, agoniado momento de regresso a casa. Gente que nem formigueiro no centro do Rio. Pessoas apressadas na busca de transporte. São milhares que se acotovelam nos pontos de embarque. Preferência dos bondes, que circulam com lotação excessiva. A minha hora também. Esforçadamente conseguia um lugarzinho no bonde, entre mulheres. Era bom. Quando o carro ganhava velocidade, havia o balanço para a direita e para a esquerda. Dava-se a impressão de que o veículo afastaria dos trilhos. Esquerda e direita e vice-versa, os passageiros acompanhavam a movimentação, pra um lado e para o outro, e alguém podia fugir ao rolar de coxas e de braços nos braços e nas coxas da garota ou da balzaquiana ao lado da gente, e o esfrega-esfrega era chamava de bolinação, termo de náutica. Assim à bolina correspondia ao fato de o navio estar inclinado. De termo do mar, passou aos sacolejos dos bondes e ainda, na escuridade dos cinemas, aos amassamentos e beliscos nos seios. Era bom bolinar as namoradas.

Deixei o Rio e à cidade maravilhosa retorno em passeio algumas vezes até que, em 19* não encontrei os populares bondes do meu tempo, veículos despoluídos, de passagem barata, românticas, higiênicos, de viagens propiciadoras de namoros inesquecíveis. Foram desativados, por determinação do poder econômico. Contra eles se fez censuras me*sas, acusados de atrapalhação do trânsito, mas a idéia estava em privilegiar os veículos a gasolina, dispendiosos e poluidores, um excesso de exploração das empresas de ônibus.

Leio agora no jornal carioca "Tribuna da Imprensa" que os bondes vão voltar. Grande idéia. Maravilhosa demonstração de bom senso das autoridades. E com eles retornarão os dias felizes de antigamente no transporte de enormes cidades brasileiras.

Tenho saudades dos velhos bondes da Light, companhia inglesa que os mantinha. Uma graça esses bons veículos no momento do RUSH. Bancos completos de passageiros, a gente imprensado entre duas garotas, aventura gostosa de coxas unidas e braços roçando no carro. Uma gostosura dos velhos tempos românticos.


A. Tito Filho, 16/03/1991, Jornal O Dia - p. 4

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*Não está visível no original

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