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quarta-feira, 16 de maio de 2012

UMA FESTA TRADICIONAL

São João foi áspero pregador, degolado na Palestina aí por volta do ano 31 de nossa era. De noite, comemora-se o São João com farta alimentação, danças, bebidas, adivinhações para casamento e morte, e acendem-se fogueiras, e soltam-se balões, e tocam-se fogos de artifícios, bombas, traques, e dançam-se quadrilhas. Festa tradicional na Europa, notadamente em Portugal, e no Brasil, aonde chegou trazida pelo descobridor lusitano.

Conta a tradição que o santo ilustre adormece durante o dia, no seu aniversário natalício. E à noite, ao enxergar o clarão do fogaréu aceso para homenageá-lo, desce dos céus e acompanha a oblação popular.

Já na Europa, em tempos recuados, se acendiam nos lugares altos e nas planícies grandes fogueiras, em redor das quais se dançava com as alegrias do anúncio de colheitas abundantes. O fogo era o símbolo da afugentação da fome e da miséria. No Brasil, houve o entendimento de que serviam as fogueiras para que se aquecessem os friorentos, no mês de São João, mas pesquisas folclóricas demonstraram que os camponeses iam e vinham por cima do braseiro infernal com o sentimento da purificação da alma, intento que se encontrou nos "feux de Saint-Jean", na velha França.

Interessantes as manifestações folclóricas. Elas voam, são peculiares a todas as comunidades. Lendas da Ásia, estórias do mundo inteiro estão vivas no espírito dos sertanejos nordestinos. Caracterizam-se pela universalidade as petas dos caçadores, as facécias de mentirosos vulgares, a gratidão dos bichos, os contos de lobos e de onças e de fantasmas. A brincadeira do dedo-mindinho vigora na Bretanha rica de depoimentos desse eu espiritual das gentes, de forças intensa, extraordinária, contagiante, a ponto de se estabelecer que aqui e alí o folclore tem variantes, para que, ao cabo de contas, seja um só.

Rabelais não teria existido sem as lendas notáveis do folclore universal.

O povo festeja o santo que ele acredita passará o dia dormindo. E o convocará à noite, para participar da festa, com o clarão das fogueiras, com os balões coloridos, com o espoucar ensurdecedor das bombas e dos traques de adultos e crianças peraltas. E com o fogo, que sempre se acreditou afugente os demônios e as feras, dirá que os gênios maus fugiram, permitindo as messes abundantes, as colheitas benfazejas. A fome e a miséria são arte diabólicas - mas a fogueira as afugentará.

A tradição quer que a data do santo sacrificado na Palestina seja festiva e zoadenta, e canta, e dançada. Não devem faltar-lhe o foguetório, os busca-pés; nem a harmonia alegre, a viola renitente; nem as quadrilhas de pares vestidos caprichosamente, amatutadamente - testemunho de que os sertanejos, de alpercatas, calças de riscado, banguelas, linguajar estropiado, festejam, no São João, a boa sorte das colheitas.

No São João comemora-se a fartura - e os aluás, os beijus, as cocadas, o milho assado e cozido, o pé-de-moleque, o mucunzá, a canjica, o inhame, a pamonha, a batata-doce empanturram barrigas de todos os feitios e de todas as idades - num agradecimento à graça da abundância, a vitória sobre o espantalho da fome.

Dia de felicidade, pelo menos de ideal de felicidade, nele os pares namorados buscam adivinhar a sorte, na prática de tantas adivinhações e tantas brincadeiras, em que a alma simples da gente acredita: duas agulhas numa bacia dágua revelarão casamento, se no fundo se ajudam. Também se brinca com a morte, e cada qual ver se chega ao fim do ano, utilizando processo infalível, segundo a crença.


A. Tito Filho, 15/06/1991, Jornal O Dia – p. 4

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