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sexta-feira, 18 de maio de 2012

TEMPOS DE MEMÓRIA (2)

Quando eu deixei Teresina, em janeiro de 1937, havia uma novidade em caminho: o telefone. Operários armavam os cabos duplos nos velhos postes de ferro, sob o comando de um engenheiro alemão ou sueco, louro, vermelho, suado e em mangas de camisa. É claro que, entre as penas que levei comigo, ao tomar em Flores o trenzinho, figurava essa de não assistir a inauguração do telefone. Teresina, que acabava de ajardinar mais uma praça, a Pedro II, e embelezar a pequena avenida em frente ao Palácio, progredia. E progredia no exato momento que eu me ia embora.

Isso não só era irreparável porque eu, como a maioria dos jovens que deixavam a terra natal, pensava em voltar. Voltar para viver ali, naquele chão da infância, em meio àquela gente que sonhava intensamente e que se recusava a crer na própria pobreza.

Deixei a cidade impregnado dela, dos seus sonhos modestos e do amor à sua condição. No trem, recitava os versos de Lucídio Freitas: "Teresina apagou-se na distância / ficou longe de mim adormecida...". E me lembrava do poeta Celso Pinheiro a contar a meu pai que, em São Luís, que visitava um dia, ficara tão inconformado por estar distante da sua terra que tinha saudades até das folhas que caíam das árvores de seu quintal.

Teresina, que aos nossos olhos ingênuos se afigurava quase que como uma metrópole, era uma pequena cidade, de trinta a quarenta mil habitantes, se tanto, com casas de telha em sete ou oito ruas e um vasto casario de palha, informe, sem conforto, que abrigava dois terços da população. No entanto, era doce o convívio da família e dos vizinhos, era doce a cidade. O calor, que só vim a perceber mais tarde, não deixou marca na minha infância nem na minha memória. Ele não existia para quem levava a vida solta dos quintais e das ruas, nos regatos que se formava depois das chuvas, nas carrerias noturnas pelos caminhos de terra e capim, no futebol da "bacia", nas brincadeiras que nos conduziam da beira do Parnaíba à beira do Poti.

Entre a rua da Estrela e a rua são José, passando pelas ruas da Glória do Amparo, dos Negros, do Fio, rua Grande, rua Bela e Paissandu - belos nomes que deveriam ressurgir - estava a cidade, toda ela, para as pessoas da nossa condição social. A Avenida Frei Serafim, hoje Getúlio Vargas, era uma promessa e um abrigo para as famílias mais prósperas. Ainda hoje identifico na memória as casas, uma a uma, e as famílias que as habitavam, parente, amigos, conhecidos.

Desconhecido era então só o caixeiro-viajante que se hospedava por algumas noites no Teresina Hotel.

A vida, já se vê, era simples e íntima. O Governador Joca Pires, à noite, sentava-se num banco da Praça, cercado de amigos e das pessoas de prol. lá a retreta, como os outros, o professor, o juiz, o estudante, a mocinha. Ouviam-se as mesmas histórias e a mesma música tocada no coreto pela banda militar.

Havia um único clube, o dos Diários, mas se dançava em qualquer casa onde houvesse moças. No mês que antecedia o carnaval, cada domingo depois da missa das nove na Igreja do Amparo, Joel Oliveira, cabeça branca, e um senhor que tinha o apelido de João Senhora, porque usava leque, e se assinava Carlos Borromeu nos escritos da imprensa local - comandavam os "assaltos" com que se esquentava a cidade para a grande festa. O carnaval era um misto de danças, cordões, corso e divertimento intelectuais, pois se editavam jornaizinhos humorísticos em que se  punha todo mundo na berlinda.

Folguedos populares eram poucos. Havia irrupção de "marujos" no adro das igrejas na Semana Santa e o "bumba-meu-boi" dos bairros distantes na época de São João. E as novenas, com prendas, e os mafuás. No Natal, havia o presépio de dona Quequé, que a cidade inteira ia visitar.

A cidade tinha sua alma e seus intérpretes, poetas e escritores, gramáticos, professores. Geração de bacharéis formada no Recife sob a égide de Tobias Barreto e Sílvio Romero - na qual se integrava entre os mais jovens meu pai, o Desembargador Cristino Castelo Branco, que mantinha o teor do debate intelectual, discutindo em saraus e conferências, reuniões da Academia Piauiense de Letras, na Maçonaria e até em Igrejas, onde pelo menos uma vez o padre teve seu sermão contestado. Mestre Higino Cunha, venerável, que ensinava latim e tocava piano, mantinha acesa a chama e reunia em torno de si escritores e estudantes. A nós, transmitia algo da sua imensa cultura, inclusive o modo de beber e a cronologia dos drinks e dos vinhos. Professor, e a cerveja? 
  
Perguntou-lhe um rapaz ao fim de uma dessas lições. Imperturbável, mestre Higino Cunha respondeu: "Cerveja, meu filho, é refresco. A gente bebe o dia inteiro".

Nem tudo era amenidade na Teresina daquele tempo. A agressividade explodia nas polêmicas jornalísticas, nos panfletos, nas campanhas políticas. Mestre Higino escrevia a "história do Pai do Jumentão" ou soltava boletins contra pessoas que profanavam a loja maçônica; vade retro Satanás... 


A. Tito Filho, 08/08/1991, Jornal O Dia - p. 4

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