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sábado, 5 de maio de 2012

RODA DE CALÇADA

Uma instituição de Teresina, tempos atrás, e roda de calçada. Após o sol posto, boquinha da noite, quando desciam as sombras noturnas, os empregados já tinham ordem de colocar as cadeiras na porta da rua. Formavam-se rodas de conversação entre as pessoas da família e outros freqüentadores, ao cintilar das estrelas, ao clarão do luar ou à luz mortiça da fraca luz elétrica, que às vezes faltava nas vias públicas a fim de que se melhorasse a do interior das residências. Feitas a roda, aguardavam-se os ventos refrescantes soprados do litoral. A capital tinha pouca vida noturna, reduzida aos hotéis, a alguns botiquins e cabarés de mulherio sem freguesia, salvo aos sábados.

Por causa de uma roda de calçada foi assassinado o meritíssimo julgador Lucrécio Dantas Avelino no distante 1927, ano em que também um assassino perverso matou o motorista Gregório, às margens do Poti, do lado de cá. O caso do juiz se deu assim. Apreciava o magistrado a roda na calçada de seu palacete presidencial, onde funcionava o animado prostíbulo Bola Preta, de cunhãs fogosas, e o Colégio Demóstenes Avelino. Nove da noite, os amigos começaram a despedir-se no rumo de casa, em busca das redes macias adornadas de varandas bonitas. em palestra ficou mais um pouco o desembargador Cromwell de Carvalho. Perto das dez, Cromwell se despede. Lucrécio põe as cadeiras no interior do prédio, tranca-se e mal começa a subir a escada para o andar de cima, ouve batidas na porta. Julga que o amigo desembargador talvez se houvesse esquecido de algum assunto, abre a porta, cercam-no dois ou três indivíduos e um deles lhe vibrou facada mortal.

Na rua Bela, agora Teodoro Pacheco , o cidadão Pedro Bezerra residia e tinha comércio. Recebia de Portugal barris de vinho tinto, marca PRR, muito apreciado pelo sabor e de uso generalizado. À noite se formava a roda, em que se viam presentes, com freqüência, mestre Higino cunha, o médico Bonifácio de Carvalho e o poeta Baurélio Mangabeira, personalidades que honravam as noites do comerciante, que lhe vendia e aos outros participantes copos do afamado vinho. A essa ilustre companhia foi levado o famoso improvisador Pedro Britto, que passou a freqüentar habitual.

Baurélio Mangabeira, tempos depois, produziu versos de exaltação à bebida, comparando-a ao sangue de Jesus. Deste modo compôs os tercetos do soneto: "Eu te saúdo Portugal burguês! / Com teu famoso vinho português / As portas dos teus poetas nunca corres... / Que o generoso fluido me endoideça / Mortal não há, talvez, que não o conheça / As virtudes do sacre PÊ e DOIS ERRES...".

Quando eu era frangote, não perdia a rodada de calçada da família, na rua São José, hoje chamada Félix Pacheco, onde morávamos, pertinho da praça Saraiva, no trecho que dava no Parnaíba. Papai me dava um níquel, moeda boa, e eu com a jarra de vidro, pela rua Rui Barbosa, ia comprar pega-pinto, cinco copos por um tostão. Era bom. Os adultos trocavam idéias e notícias, e a negra velha, cozinheira vinda do Peixe, agora nossa Senhora dos Remédios, me contava estórias maravilhosas de reis poderosos e príncipes encantados. Dez horas o sono pegava a gente e se buscava a rede convidativa.

Uma senhora inteligente, proprietária de linguagem simples e de estilo agradável, escreveu O OITÃO, uma narrativa sobre a deliciosa [e] tranqüila Teresina dos anos 50. Chama-se Ana Clélia Napoleão. Uma gostosoura de livro, com a história do avô Pedro Britto e de sua roda de calçada. Depois eu digo mais do trabalho da autora.


A. Tito Filho, 03-04/02/1991, Jornal O Dia, p. 4

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